domingo, 4 de novembro de 2018

AS DESCULPAS EVITAM-SE



A Ordem do Dia, de Éric Vuillard, é um dos melhores livros que li este ano. Referi-me a ele aqui. Como foi possível o nazismo chegar ao poder e levar a cabo tudo o que se seguiu? É uma pergunta que se ouve muitas vezes, como se para ela não houvesse explicação. Mas há. E a mais simples é a mais correcta: quando o ódio se mistura com o deslumbramento, quando este se promove com a indiferença, temos uma mistura explosiva. Deslumbramento e indiferença. Aquele, excitado pelas massas em fúria; este, adormecido pelas massas resignadas, confortavelmente instaladas, laxistas, tolerantes, permissivas.

Lembrei-me muitas vezes da fotografia ao alto enquanto lia o livro. No meio de uma multidão obediente, um homem, com um simples gesto, mostra que estava do lado certo ao não fazer a saudação nazi quando todos os outros a faziam. A História mostrou-nos que ele estava certo. Vuillard não fala daquele homem, prefere lembrar quanto todos os outros à volta dele contribuíram para que fosse possível o nazismo ascender ao poder e fazer tudo aquilo que sabemos hoje que fez. 

Vuillard lembra os empresários que beneficiaram com o nazismo, aproveitando a mão-de-obra barata dos campos de concentração, os benefícios fiscais por terem passado o cheque ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, dito nazifascista, anticomunista, antissocialista. Vuillard lembra igualmente todos os cidadãos anónimos que se deixaram fascinar pelo ódio, não querendo ver o que estava à vista de todos, acenando «bandeirolas que estremecem à passagem do cortejo», e «os padres [que] apelaram no púlpito a que se votasse a favor dos nazis», e os empresários oportunistas. 

A dúvida que coloca já não é sobre como foi possível, pois essa está explicada. É outa: «Serpentinas, papelinhos, bandeirolas. Que terá acontecido a essas meninas loucas de entusiasmo, o que terá sucedido aos seus sorrisos? à sua despreocupação? aos seus rostos tão sinceros, tão alegres! a todo esse júbilo de março de 1938? Se uma delas de repente hoje se reconhece no ecrã, em que é que pensará?» 

Pois bem, no futuro quero ver-me no ecrã como aquele homem isolado da fotografia ao alto. Quero não sentir vergonha por ter apoiado quem prometendo ordem apenas semeou caos, quem prometendo paz o fez apelando ao uso da força, das armas, quem prometendo países grandiosos o fez amesquinhando seres humanos. Porque as desculpas não se pedem, evitam-se. E vergonha na cara talvez não pese tanto quanto orgulho ferido, mas a falta dela transforma o rosto numa coisa odiosa.

2 comentários:

Evandro disse...

Agradeço a dica, não conhecia. A este respeito, conheço "Os Carrascos Voluntários de Hitler", de Daniel Goldhagen, que ainda citando por estes dias

Evandro disse...

" O povo alemão da época não deve ser visto como um fantoche passivo ou vítima aterrorizada por seu próprio governo. Como mostram as ações do alemães relativas a uma variedade de políticas nazistas, eles eram agentes voluntários, fazendo escolhas conscientes de acordo com suas crenças e valores preexistentes e em evolução."

('Os Carrascos Voluntários de Hitler, Daniel Goldhagen; p. 129)