J. D. Cahill é um pai ausente, ossos do ofício. É o preço a
pagar por trazer ao peito a estrela de Marshal. Viúvo, ficou com dois filhos a
cargo. Quando se afasta, deixa-os ao cuidado de terceiros. Danny, o mais velho,
tem 17 anos. Tenta atrair a atenção do pai da pior maneira, deixando-se levar
pela conversa de um assaltante de bancos e sua respectiva pandilha. Billy Joe, cinco anos
mais novo do que Danny, é mais consciencioso e tenta chamar o irmão à razão. É
neste ambiente de drama familiar que decorre Cahill U.S. Marshal/Justiça de
Cahill (1973), western de Andrew V. McLaglen (n. 1920 – m. 2014) com John Wayne
no papel principal. A homenagem ao mestre John Ford, de quem McLaglen foi
assistente, é óbvia, quer pela presença de Wayne e outros actores da trupe
fordiana, como Harry Carey Jr. ou Hank Worden, quer pela dimensão moral que
liga as personagens. Outros filmes do mesmo realizador, tais como Gun the Man
Down (1956), Shenandoah (1965) ou mesmo o mais cómico The Rare Breed (1966), já
tinham explorado o núcleo familiar enquanto mote narrativo. Neles, o valor da família surge em linha de colisão
com as obrigações profissionais, com o desespero de causas sociais ou com as
privações materiais que levam ao crime e à aventura.
Há uma nuvem de ligeireza a pairar
sobre o cinema de McLaglen, sempre bem-intencionado e com uma atitude
moralizante que não chega a ser insuportável. O que torna os seus westerns deveras
interessantes é o modo como debaixo dessa nuvem trovejam dilemas de consciência
naturalistas, prendendo-nos ao desenrolar da história com expectativas que não
acabam goradas. Por exemplo, neste Cahill há um paradoxo que não passa
despercebido. Cahill é um agente que coloca a lei acima da família, entrega-se de
tal modo ao trabalho que negligencia a educação dos filhos. Tem consciência
disso, assume-o e procura redimir-se como sabe. Pouco e mal. Mas a determinada
altura há um pormenor que faz a diferença. E se subitamente os filhos de Cahill
surgissem entre os criminosos que ele persegue? É o tipo de situação, sem tempo
nem espaço, que tantas vezes se coloca e para a qual não existem respostas
fixas. Deverá o dever profissional sobrepor-se ao dever parental? Perante os
filhos, prevalecerá o Cahill U.S. Marshal ou o Cahill pai? Serão ambos
conciliáveis? Merecerão os filhos o perdão que outros criminosos jamais
mereceram?
Montado o palco da forca, prestes a serem executados pelos crimes
que não cometeram, quatro homens que também não são inocentes, porque no
western nunca existem inocentes, aguardam que a justiça de Cahill seja feita,
desconhecendo que é Cahill quem tem a corda na consciência. Tratando-se de um
género popular, que, ao contrário do que muitos julgam, não se esgotou na
década de 1950, o western tem este mérito de oferecer com naturalidade exemplos
de situações limite nos âmbitos da ética, da axiologia, da moral, da política,
entretendo tanto quanto fazendo reflectir.
Andrew V. McLaglen pode nunca ter
sido tão genial quanto John Ford, pode nunca ter alcançado a densidade do mestre
no enquadramento das suas personagens - apesar do magnífico plano de perfil do pai com o filho ao fundo -, mas pressente-se nos seus filmes a mesma
jovialidade, a mesma vontade para reflectir o humano sem menosprezar a regra do
entretenimento. A figura do herói, neste caso como em Shenandoah, é um pai,
nada deve ao estereótipo do marginal, do justiceiro isolado ou do xerife
implacável. É um herói convencional, tão convencional quanto qualquer pai nos
tempos do Velho Oeste ou nestes nossos tempos desprovidos de heróis. Podemos afiançar que o desempenho de John Wayne está ao
nível dos melhores que outorgou à posteridade. Pretende homenagear os homens
que tentaram impor a lei onde ela não existia, colocando um deles no limbo
daquilo a que damos o nome de justiça por a determinada altura o valor da
família ter sido mais forte.
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