quinta-feira, 1 de novembro de 2018

CORAÇÃO DESABITADO


No terceiro volume dos Trípticos Espanhóis (Relógio D’Água, Outubro de 2004), Joaquim Manuel Magalhães apresenta a poesia de Amalia Bautista (n. 1962) sublinhando algumas das suas características mais evidentes: a concisão, o gosto pela narrativa breve, contida, descarnada, desornamentada do supérfluo, aludindo amiúde a registos que podemos supor biográficos, embora exigindo ao leitor cuidados redobrados. Essa «tentativa de sempre evitar a grandiloquência», muito ao gosto de um largo conjunto de poetas portugueses surgidos no final do século passado ou no início deste, faz de Amalia Bautista uma das poetas contemporâneas mais traduzidas do castelhano para português.
Inês Dias, também ela poeta, coligiu recentemente num volume intitulado Coração Desabitado (Averno, Maio de 2018) um conjunto generoso de poemas provenientes dos seguintes livros da autora espanhola: Cárcel de Amor (1988), Cuéntamelo outra vez (1999), Estoy ausente (2004), Pecados (2005), Falsa Pimienta (2013). Alguns poemas de La mujer de Lot y otros poemas (1995), reaparecidos no volume de 1999, também foram contemplados, assim como o ciclo Hilos de seda (2003), posteriormente integrado no livro Estoy ausente (2004). Fica o leitor português de poesia traduzida, essa figura estranha e raríssima dos nossos dias, não só com a possibilidade de saber um pouco mais acerca desta obra, como de comparar as traduções de Inês Dias e Joaquim Manuel Magalhães, confrontando-as com os originais que acompanham as respectivas publicações.
Da recolha oferecida em Coração Desabitado podemos inferir uma tendência para poemas curtos onde o narrativo se alia à precisão aforística, sem que o poema se feche em presunçosas lições acerca das coisas do mundo ou se ensimesme num confessionalismo despudorado. Amalia Bautista mina a fraqueza dessas tendências mais sentimentais recorrendo a uma ironia discreta, a certo absurdismo e até a algum nonsense: «De súbito / um homem novo sentou-se a meu lado. / Olhei-o e vi que tinha um só olho / no meio da testa, um olho escuro, / tristíssimo mas brilhante» (p. 23). O amor é porventura o tema mais recorrente, por vezes a par da experiência da morte. Esta morte pressupõe-se física e o amor filial, como no poema Sonho Com o Meu Pai, onde é o falecido pai quem se dirige à filha para consolá-la no momento da perda; ou mais paradoxalmente abstracto, como no poema Necrofilia, onde a dor, o desconforto e o desânimo, exasperam a decisão absurda: «Só tenho a certeza de uma coisa: / nunca mais voltarei ao cemitério / até o meu telefone tocar / e a tua voz me pedir um encontro» (p. 17).
Outro assunto aludido frequentemente é a mulher. Digo-o deste modo simplificando a questão, para evitar cair no modelo recorrente da “condição feminina”, também nestes poemas reflectida, por julgar que a mulher enquanto tema nesta poesia resulta mais de uma tentativa de enquadramento cultural do que da condição subjectiva da autora num mundo dominado por homens. Assim sendo, a mulher anónima que serviu de modelo ao escultor (Nu de Mulher) surge ao lado de personagens históricas como Margarida da Provença, mitológicas como Galateia, lendárias como Xerazade, literárias como Ofélia, num processo de identificação que transborda a leitura subjectiva para instaurar uma concepção crítica da história. Ou seja, estes poemas, desmontando leituras cristalizadas, reflectem e questionam especialmente a forma como a mulher foi sendo objecto de observação ao longo da história:  

A MULHER DE LOT

Ainda ninguém nos esclareceu
se a mulher de Lot foi transformada
em estátua de sal como castigo
pela curiosidade irreprimível
e pela desobediência apenas,
ou se ela se virou pois no meio
de todo aquele incêndio pavoroso
ardia o coração que mais amava.

Há na poesia de Amalia Bautista uma elegância desarmante que não podemos deixar de relacionar com a capacidade de expurgar os versos do excesso verbal. Não é apenas a concisão que os torna atraentes, é o modo como nessa concisão podemos ainda vislumbrar zonas obscuras, uma complexidade dissimulada pela linguagem depurada, o recurso frequente a sistemas métricos clássicos subitamente traídos por uma liberdade solta de preconceitos. Tudo justamente sopesado, a melancolia e o gosto de viver, como nesse remate de um dos fragmentos do ciclo Fios de Ceda que podia servir de ars poetica a todo o livro: «Não percas pé. Mantém o equilíbrio» (p. 101). Dito assim, parece conselho. Não é. Dir-se-á mais correctamente máxima proveniente da observação arguta do trabalho de uma «maldita aranha». Onde mais ir buscar modelos para a vida? Os desenho são de Débora Figueiredo. E são bem bonitos. 

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