terça-feira, 20 de novembro de 2018

E NELE TODO O SANGUE SE CONCENTRA


É provável que uma das características mais comuns na poesia portuguesa das duas últimas décadas seja o discurso torrencial, de pendor narrativo, muitas vezes repleto de referências, acumulando alusões e imagens mais ou menos agressivas, mais ou menos irónicas. A partir de certa altura, o poema dito longo e palavroso vulgarizou-se. Com ele, o fogo-de-artifício da retórica, contaminado de cinismo aligeirado, mais fiel à ironia do que à corrosão satírica. Daí que o espanto não se contenha perante "poeta novíssimo" inclinado para a brevidade, anunciando-se desde logo “uma escrita contra o seu tempo a que convém estar atento”. É paleio de crítico que raras vezes se dá ao trabalho de explicar o que seja isso do tempo de um poeta. Alargando a panorâmica, facilmente daremos com uma diversidade que rouba à excepção a excepcionalidade. Neste tempo que é o nosso poetas há que talvez passem despercebidos em certos círculos, porventura marginalizados por quem não os julga dignos de apreço ou simplesmente por eles próprios se revelarem despreocupados com defumações vindas de quem não consegue olhar para o mundo senão através do buraco da fechadura. 
   João Pedro Mésseder (n. 1957) é exemplo de poeta com obra vastíssima, com inúmeras incursões pela poesia para a infância que em nenhum momento desleixam a exigência da palavra poética. Tratando-se de poeta que vem privilegiando de há muito as formas breves, por vezes brevíssimas, talvez possamos também dele dizer que escreve contra os do seu tempo. Porém, neste caso a concisão não tem merecido a mesma atenção que se presta a novíssimos cultores do epigramático. Em E nele todo o sangue se concentra (Poética Edições, Julho de 2018) reúnem-se poemas de índole muito diversa, tanto no tema como na forma. Continuando a preferir a brevidade, Mésseder envereda por vezes pelo poema em prosa. Em dois desses poemas, De Ofir a Esposende, em voo de olhar e Ribeira do Porto, aproxima-se de um certo paisagismo que rareia na nossa poesia. Os lugares são nesses como noutros dos seus poemas um estímulo para o olhar que motiva a escrita, por vezes alcançando divertidas soluções: «Funerária, / covil de ladrão, / morada de herói comunista, / esquadra de polícia, / bordel, / padaria, / loja de fruta e legumes, / salão de teatro - / assim fez Deus / a rua do Paraíso» (p. 40). 
   Como bem nota Maria Madalena M. C. Teixeira da Silva no posfácio, «entre a diversidade de objectos poéticos que estes poemas abordam, as mulheres ocupam um lugar muito significativo» (p. 73). Mulheres anónimas ou nem por isso, por vezes à laia de homenagem como nos três poemas intitulados Alejandra Pizarnik, o terceiro dos quais ensaiando uma comparação da poesia da poeta argentina com a poesia de Sophia, ou no poema dedicado a Inês Lourenço, ou nos dois em diálogo com a pintura de Joana Rego, ou nos poemas Silvana Mangano, Vera Mantero, Charlotte Rampling, Isabelle Huppert. Mas há ainda o olhar deleitado de Rapariga, o discurso de pendor social no poema Corpo.Mulher, a elegia A uma rapariga morta, as mulheres conversando e as mulheres sós do belíssimo díptico Comboio da noiteAs homenagens estendem-se a alguns escritores, tais como Camilo Pessanha, Manuel António Pina, António Ramos Rosa ou o Herberto Helder que adivinhamos no circunstancial Escrito no metro, a caminho de casa: «Véspera do Dia de Portugal / na livraria. / Está com oitenta e três, / se calhar não consegue / escrever outro - / comentava a empregada / para a cliente. / Não fosse entretanto morrer, / também eu fui levantar / A Morte sem Mestre / que tinha encomendado. / Vinte e dois euros: ainda / me ficou caro / o livro de instruções» (p. 33). 
   Arguto e sensível é o olhar que se esconde por detrás destes poemas, que pela concisão e aparamento lembram-nos por vezes a poesia de Carlos de Oliveira. Principalmente na sequência final de quinze poemas intitulada Flor sanguínea. João Pedro Mésseder é um poeta discreto, não necessita de muitas palavras para tocar com profundidade temas complexos como o da morte e o da finitude, na relação que têm com a ideia de eternidade. Os seus poemas sugerem uma busca da beleza que se descobre no pormenor, observam a luz e a sombra que paira sobre todas as coisas e reflectem essa duplicidade sem a enclausurarem num axioma religioso ou político: «Se a beleza que persegue / transporta em si, como sempre, um pouco da morte // que veio fazer aqui? / Não dirá o que procura?» (p. 18) Ainda do posfácio, a ideia de um olhar para fora que sustenta o poema. Contra olhares ensimesmados, caídos no abismo de um eu lírico que raramente não redunda em mera encenação.

2 comentários:

manuel a. domingos disse...

Despertas em mim a curiosidade.

hmbf disse...

Já tinha lido outro dele de que também gostei muito:

http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2006/04/elucidario-de-youkali.html