No final dos anos sessenta, ou início de setenta, não
consigo recordar exactamente, e numa daquelas surtidas por quintais e asseguias
a que os miúdos de província se entregavam para combate do tédio,
incomodando este e aquele, mofando dos velhos, soltando bestas de carga
dos palheiros ou escondendo carroças e ferramentas (na linguagem popular ”
andar a fazer mal”) passámos pelo quintal de um homem que tinha sido albardeiro
e que vivia num casebre de telha vã. Um dos mais velhos de nós, querendo
espantar ou desassossegar o velho, pregou um valente murro na porta. Para
nosso espanto, a porta caíu no chão de terra batida. Não tinha dobradiças, ou
gonzos. Era, simplesmente encostada. Ao pé de uma fogueirita a um canto, o
vulto do homem, sentado no escuro, uma manta, ou saca de serrapilheira sobre as
costas.
Passaram-se três ou quatro anos. Houve briga lá em casa
por causa do homem. A minha mãe barafustava com o meu pai. O velho era meu
tio-avô. Enquanto o meu avô paterno foi vivo, foi responsabilidade sua e do resto
dos irmãos dar-lhe sustento. Mas os homens delegavam nas mulheres esse
trabalho. O meu avô, sendo viúvo, como era uso, ninguém via nisso nada de
anormal, pagava às cunhadas para cuidarem dele. Morto o meu avô, a minha mãe
herdou parte dessa tarefa, creio que uma quinzena a cada três meses. E aí foi a
bronca. Mulher de geração mais nova, deu com ele em estado lastimável. Sem
roupa que vestir de lavado, cama de palha, louça pouca. No casebre, que
simultâneamente tinha servido de oficina de albardeiro, amontoavam-se lixo,
sujidade, as abegarias da arte, alguns restos de materiais que
tinha utilizado para fazer as albardas, sua profissão e sustento enquanto se
manteve activo ou houve bestas de carga ou de monta.
«Ai ó mê t’Jaquim, atão mas vocêmecê tá carregadinho de
piolhos». Chamou a irmã. Aqueceram água. E lavaram-no. Coisa que, por pudor,
não teria permitido às cunhadas, da sua geração. Mas as sobrinhas eram mais
novas, lá acedeu…
Indignadas, as duas irmãs deram-lhe banho, vestiram-no de
lavado. Arranjaram-lhe cama, compuseram-lhe banca e louça, onde comesse
sentado. E a preocupação do velho não era que vivesse mal. Antes pelo
contrário. Dependente das cunhadas e irmãs, a preocupação dele era que as
sobrinhas fossem discutir com as tias por tê-lo deixado chegar àquele ponto…«ai
ó cachopas, vocemês nã me vão arranjar inferno com as minhas cunhadas ó c’as
nhês irmãs. Q’elas tratum-me tã bem, nunca me deixaram passar fome, nim elas
coitadas podem mais, nã param de manhã à noite c’a lida da casa delas e c’a lavoira!» Só
nessa altura percebi completamente a patifaria que foi alagar-lhe a porta uns
anos antes. Mofar do velho. Ou, no dizer dali, «fazer pouco da miséria».
Texto integral no Âncoras e Nefelibatas.
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