quinta-feira, 22 de novembro de 2018

PROPUS-ME SER ALGUÉM



Propus-me ser alguém,
ter e dar
pessoa e horizonte
próprios.

Mendiguei até conseguir um quarto vivo.
Assinei o ar, as mortalhas
e a escritura.
Organizei a luz, as horas,
ditei as hierarquias,
movi os sítios, as pontas,
os elementos sossegados,
os movimentos e os ruídos.
Abri a porta
e entraram liturgias
e o coro
e o azar
e rodearam-me.
E entrou o solista,
enrodilhou-me num fio azul,
deu-me uma condição oculta de fábula
e um ofício visível e errante
de erva percorrendo as criaturas.
E a festa brilhou sobre a sua música
ao longo do dia.
Porém a noite chegou
e flutuei  só entre penumbras e inimigos.
Madeiras, torneiras,
carpetes, recantos, cristais,
todas as coisas
ergueram suas leis,
suas dinastias,
suas singularidades,
devorando
o meu argumento de vida,
o meu som,
o meu calor,
arremessando-me.
Atrás de mim cerrou-se a porta.

Amelia Biagioni (n. Gálvez, Argentina, 1916 - m. Buenos Aires, idem, 2000), versão de HMBF a partir do original coligido por Marta Ferrari, in Antología – La poesia del signo XX en Argentina, vol. 7 da colecção La Estafeta del Viento, dirigida por Luis García Montero e Jesús García Sánchez, Visor Libros, 2010, pp. 75-76.

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