quinta-feira, 15 de novembro de 2018

UM POEMA DE ENRIQUE MOLINA



ALIMENTOS

Ó comidas! Ó miragens!
Instalo-me diariamente em lugares extravagantes
Com grande vontade de viver
Comedores anónimos incluídos no repertório da loucura
Liturgias e terebrantes megafones do porto sob ventiladores
— Falsa comida dos hotéis multiplicada por espelhos —
A toalha sempre em fuga flamejando com a tormenta
E a minha ávida boca coberta de mucosas vermelhas
Como um candelabro imperial iluminando a mesa de cabeceira
— Ó comestíveis! —
A grande hóstia nutritiva onde habitam o desejo e o fogo
Saladas hirsutas guisados desafortunados
Sem ajuda — de todos os buracos
Desde o próprio fundo do planeta
Chega o rumor eterno de mandíbulas enormes que devoram —
Adâmicos parentescos com folhas e bestas
O esplendor desta comida demente
Cativa vigorosamente minha alma
Como uma mulher nua exibindo o húmido relâmpago do seu sexo
Onde os cães do meu sangue repartem o coração do sol
Entre aromas de frituras milagres e vinhos
Desafiando a cascavel dos mortos
Enquanto fosforeja a ratazana diabólica que percorre toda a minha vida
Insaciável
Sem jamais alcançar um prato

Versão de HMBF.


Poeta e pintor argentino filiado no movimento surrealista, Enrique Molina (n. 1910 – m. 1997) formou-se em direito sem nunca ter exercido. Preferiu correr o mundo como tripulante na marinha mercante. Fundou com Aldo Pellegrini a revista A partir de cero, estreando-se em 1941 com Las cosas y el delirio. Viveu em vários países da América Latina, cultivando uma poesia arreigada ao universo simbólico e mítico dos povos ameríndios. Foi distinguido em vida com importantes prémios. Sobre ele escreveu Octavio Paz: «é uma jóia viva neste imenso deserto de ninharias». Nos seus poemas cabem desejos e paixões, mas também terrores sagrados; o belo e o horrível; a invocação do estado primitivo das coisas a partir da observação da sua degenerescência.  

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