O italiano Umberto Eco (1932-2016) é uma daquelas raras
personalidades que todos parecem estar obrigados a apreciar. A adaptação
cinematográfica de O Nome da Rosa (1980) granjeou-lhe imensa popularidade,
livros tais Como Se Faz Uma Tese Em Ciências Humanas (1995) fizeram dele um
pedagogo incontornável, estudos monumentais sobre a Idade Média, publicados
entre nós pela Dom Quixote, impuseram-no enquanto erudito entre os eruditos. A
obra é imensa, percorrendo fundamentalmente os territórios da ficção e do
ensaio. Aos Ombros de Gigantes (Gradiva, Outubro de 2018) inscreve-se neste
último domínio, embora por diversas ocasiões sintamos que estamos a lê-lo como
se fosse um romance. São doze textos escritos para serem lidos em público, o
que facilita a leitura, concebidos para o festival La Milanesiana, versando
temas tão distintos como a beleza e a fealdade — a que o autor dedicou
especial atenção em dois volumes imprescindíveis, publicados com os títulos História
da Beleza e História do Feio —, a conspiração e o invisível, o segredo e a mentira, o fogo e a imperfeição.
Diz-se na nota prévia que a primeira aula, a que ofereceu
título a esta recolha, surge como premissa. E dessa premissa colhemos, desde
logo, o sentido de humor único, uma atenção incomum à contemporaneidade, o
saber de um arquivista acumulador de factos inusitados, capaz tanto de facilmente
desmontar mitos universais como de se colocar numa posição de humildade face ao
conhecimento: «Se quiser ser levado a sério, qualquer pensador dos nossos dias
(para não falar de poetas, romancistas ou pintores) deve demonstrar que diz
algo diferente do que diziam os seus predecessores imediatos e, quando não o
faz, deve fingir que sim. Pois bem, os escolásticos faziam exactamente o
contrário. Cometiam os parricídios mais dramáticos, por assim dizer, afirmando
e tentando demonstrar que estavam justamente a repetir aquilo que os seus pais
tinham dito» (pp. 21-22). E o que faz Umberto Eco? Textos como Paradoxos e
Aforismos ou Dizer o Falso, Mentir, Falsificar, talvez ajudem a responder.
A preocupação primordial do autor consiste em decompor o
preconceito e a ideia feita, desmistificar apelando a uma leitura racional dos
fenómenos. Fá-lo com um humor que pisa amiúde a linha que separa a ironia da
sátira, mas também com uma lógica desarmante. Isso é evidente no exercício
proposto para uma distinção entre paradoxo e aforismo: «O paradoxo é uma
inversão real da perspectiva comum, apresenta um mundo inaceitável, provoca
resistência, rejeição e, contudo, se fizermos um esforço por o entender, produz
conhecimento; no final, parece espirituoso porque temos de admitir que é
verdadeiro. O aforismo cancerizável é portador de uma verdade muito parcial e,
muitas vezes, depois de ser cancerizado, torna-se claro que nenhuma das duas
perspectivas que ele abre é verdadeira: parecia verdadeiro só por ser
engraçado» (p. 228). E assim se aclara tanto do estilo que pulula nas mais
inimagináveis obras, atraentes na dicção, repulsivas na observação da realidade.
Que é, como não admiti-lo, o que mais temos à mão de verdade.
Umberto Eco é não só exaustivo nos exemplos facultados,
como altamente persuasivo em todos eles. Interessa-se por conceitos negativos,
por assim dizer, como os de mentira e de falsidade tanto quanto se interessa pela
verdade; a existência do feio garante-lhe o belo, só se permite falar de
perfeição aceitando que a imperfeição existe. Os opostos não são pensados separadamente, mas antes enquanto realidades complementares. Há em
todo o seu pensamento um esforço de conciliação que se afasta de uma atitude
exclusivista como de uma postura edificante, pois não lhe importa a cristalização
de uma perspectiva. Está, antes de mais, empenhado nas possibilidades do olhar enquanto
contributo para um conhecimento o mais generalizado e humanista possível: «Mas
porque é que julgamos tola a tentiva de aperfeiçoar a Vénus de Milo? Porque,
quando a contemplamos, o que nos fascina é imaginar o todo que se perdeu. E a
este sentimento vem juntar-se outro gosto, nascido no século XVIII, geralmente
resumido pela expressão estética das ruínas» (p. 294).
Neste sentido, podemos dizer que Umberto Eco é um esteta
das ruínas, ele move-se entre destroços para tentar compreender a perfeição que
se esconde por detrás do imperfeito. Para ele, a história é um enigma. O
trabalho do filósofo consiste num esforço de resolução desse enigma. Aos Ombros
de Gigantes reforça a nossa convicção de que toda a sua vida ficará para sempre
como um exemplo desse esforço e dessa dedicação, desbravando terrenos complexos
com a simplicidade que é apenas característica dos sábios.
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