segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

AOS OMBROS DE GIGANTES


O italiano Umberto Eco (1932-2016) é uma daquelas raras personalidades que todos parecem estar obrigados a apreciar. A adaptação cinematográfica de O Nome da Rosa (1980) granjeou-lhe imensa popularidade, livros tais Como Se Faz Uma Tese Em Ciências Humanas (1995) fizeram dele um pedagogo incontornável, estudos monumentais sobre a Idade Média, publicados entre nós pela Dom Quixote, impuseram-no enquanto erudito entre os eruditos. A obra é imensa, percorrendo fundamentalmente os territórios da ficção e do ensaio. Aos Ombros de Gigantes (Gradiva, Outubro de 2018) inscreve-se neste último domínio, embora por diversas ocasiões sintamos que estamos a lê-lo como se fosse um romance. São doze textos escritos para serem lidos em público, o que facilita a leitura, concebidos para o festival La Milanesiana, versando temas tão distintos como a beleza e a fealdade a que o autor dedicou especial atenção em dois volumes imprescindíveis, publicados com os títulos História da Beleza e História do Feio , a conspiração e o invisível, o segredo e a mentira, o fogo e a imperfeição.
   Diz-se na nota prévia que a primeira aula, a que ofereceu título a esta recolha, surge como premissa. E dessa premissa colhemos, desde logo, o sentido de humor único, uma atenção incomum à contemporaneidade, o saber de um arquivista acumulador de factos inusitados, capaz tanto de facilmente desmontar mitos universais como de se colocar numa posição de humildade face ao conhecimento: «Se quiser ser levado a sério, qualquer pensador dos nossos dias (para não falar de poetas, romancistas ou pintores) deve demonstrar que diz algo diferente do que diziam os seus predecessores imediatos e, quando não o faz, deve fingir que sim. Pois bem, os escolásticos faziam exactamente o contrário. Cometiam os parricídios mais dramáticos, por assim dizer, afirmando e tentando demonstrar que estavam justamente a repetir aquilo que os seus pais tinham dito» (pp. 21-22). E o que faz Umberto Eco? Textos como Paradoxos e Aforismos ou Dizer o Falso, Mentir, Falsificar, talvez ajudem a responder.
   A preocupação primordial do autor consiste em decompor o preconceito e a ideia feita, desmistificar apelando a uma leitura racional dos fenómenos. Fá-lo com um humor que pisa amiúde a linha que separa a ironia da sátira, mas também com uma lógica desarmante. Isso é evidente no exercício proposto para uma distinção entre paradoxo e aforismo: «O paradoxo é uma inversão real da perspectiva comum, apresenta um mundo inaceitável, provoca resistência, rejeição e, contudo, se fizermos um esforço por o entender, produz conhecimento; no final, parece espirituoso porque temos de admitir que é verdadeiro. O aforismo cancerizável é portador de uma verdade muito parcial e, muitas vezes, depois de ser cancerizado, torna-se claro que nenhuma das duas perspectivas que ele abre é verdadeira: parecia verdadeiro só por ser engraçado» (p. 228). E assim se aclara tanto do estilo que pulula nas mais inimagináveis obras, atraentes na dicção, repulsivas na observação da realidade. Que é, como não admiti-lo, o que mais temos à mão de verdade.
   Umberto Eco é não só exaustivo nos exemplos facultados, como altamente persuasivo em todos eles. Interessa-se por conceitos negativos, por assim dizer, como os de mentira e de falsidade tanto quanto se interessa pela verdade; a existência do feio garante-lhe o belo, só se permite falar de perfeição aceitando que a imperfeição existe. Os opostos não são pensados separadamente, mas antes enquanto realidades complementares. Há em todo o seu pensamento um esforço de conciliação que se afasta de uma atitude exclusivista como de uma postura edificante, pois não lhe importa a cristalização de uma perspectiva. Está, antes de mais, empenhado nas possibilidades do olhar enquanto contributo para um conhecimento o mais generalizado e humanista possível: «Mas porque é que julgamos tola a tentiva de aperfeiçoar a Vénus de Milo? Porque, quando a contemplamos, o que nos fascina é imaginar o todo que se perdeu. E a este sentimento vem juntar-se outro gosto, nascido no século XVIII, geralmente resumido pela expressão estética das ruínas» (p. 294).
   Neste sentido, podemos dizer que Umberto Eco é um esteta das ruínas, ele move-se entre destroços para tentar compreender a perfeição que se esconde por detrás do imperfeito. Para ele, a história é um enigma. O trabalho do filósofo consiste num esforço de resolução desse enigma. Aos Ombros de Gigantes reforça a nossa convicção de que toda a sua vida ficará para sempre como um exemplo desse esforço e dessa dedicação, desbravando terrenos complexos com a simplicidade que é apenas característica dos sábios.

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