Se é verdade que nunca abandonámos por completo a herança
grega, não menos clara e evidente é a releitura que tem vindo a ser feita dessa
herança nos últimos anos. A Grécia já não nos chega apenas enquanto depósito de
uma mitologia própria onde germinaram filosofia e democracia, poesia e
tragédia, berço civilizacional povoado por deuses e semideuses, último reduto do
heroísmo que atribui às forças naturais a figura humana. Para uma releitura actualizada da Grécia dos nossos tempos, porventura menos contemplativa do que a outrora cultivada por poetas como Sophia, contribuiu sobremaneira
o livro A Terceira Miséria (Relógio d’Água, Fevereiro de 2012), de Hélia
Correia. Mas não posso deixar de assinalar dois esforços mais recentes: A Única Palavra (Douda Correria,
Outubro de 2017), de Sarah Adamopoulos, e, já este ano, o extraordinário Um
Quarto em Atenas (Tinta-da-China, Janeiro de 2018), de Tatiana Faia. Um poeta
que desde cedo soube colocar os problemas da cultura em questão nos seus poemas
é João Miguel Fernandes Jorge (n. 1943), autor de obra extensa por diversas
ocasiões directamente ligada a temas históricos. Um dos resultados mais
evidentes dessa ligação é o afastamento que na sua poesia se opera de uma ideia
de poesia unívoca, fechada à relação com outros domínios do pensamento e do
saber. De resto, o autor de Sob Sobre Voz (1971) tem escrito imenso sobre arte.
Este labor advém de um conhecimento que se intromete nos poemas, conferindo-lhes
um estatuto que transborda os limites da expressividade linguística.
No mais
recente Fuck The Polis (Relógio D’Água, Outubro de 2018) transporta-nos para a
Grécia, convidando-nos a viajar através de apontamentos ora circunstanciais —
«Em Kampos, quando procurava as ruínas / do palácio bizantino, dei comigo a /
tomar café no bar do partido comunista» (p. 15) —, ora indagadores de uma
História que se julga incrustada nas pedras: «O cortejo / de Elêusis saía de
Atenas / sob o grito invocador / da batalha que foi em // Salamina» (p. 13). O
principal problema que um livro deste género levanta ao leitor é o de ficarmos
com a sensação de que apenas nós, que não somos gregos, ainda insistimos na Hélade,
viajando para a Grécia actual à procura do passado entre escombros, mitos desfeitos
em pó, paredes de mármore engessadas para turista ver, alimentando
sonhos acerca de um tempo que existe para a eternidade tão-somente sob a forma
de resquício, nos pergaminhos, nas ruínas dos templos, na arte que sobreviveu à
pilhagem e à destruição dos séculos.
Sobre os intentos do viajante somos
prevenidos: «Em viagem / apenas me interessa a geografia e a / história ao
redor, quanto aos humanos / eles estão para mim como a paisagem, / de certo
modo mortos vivos em // volta. Nada lhes digo, nem quero que / digam» (p. 36).
Curiosamente, surgem nos poemas. Sejam os rapazes que jogam ao berlinde, o
amigo, o operário das obras do prolongamento do metro, dois homens num café a examinarem
moedas, o interlocutor anónimo e ocasional na viagem de barco entre ilhas, ou
as prostituas que «aguardam nas suas casinhas de prazer / fantasias de qualquer
realista — / na parede, a negro — fuck the polis» (p. 65), os humanos ocupam os
poemas como o mármore ocupa o que sobra dos templos, são pedra branca, chão
batido, estatuetas de terracota que contrastam com a pedra de ara sobre a qual
se reza a missa, são figuras cobertas de verdete.
Se a cidade é o palco por
excelência, com suas esplanadas vazias e cafés recorrentes, as evocações do
passado surgem invariavelmente num contexto de movimentação para o presente. É
assim noutros como no mais acessível dos poemas, intitulado Entre Agia Marina e
Kerameikos: «Entrou na carruagem, ficou de pé / e fez em voz pausada, tocada
por / vezes de emoção, um longo / discurso. Perguntei ao meu amigo / — É
um sofista ou um poeta? / — Um mendigo. Que a mãe / está a morrer no hospital, mas
falou / de Sólon e da escravatura da dívida» (p. 25). Não sendo possível
assegurar que noutros tempos o poeta e até o sofista também mendigassem, mal se
distinguindo dos que hoje dão ares de cinismo residindo em condomínios fechados,
os tempos que neste breve poema se convocam separam um passado histórico, de
sofistas e poetas, de um presente concreto, com seus mendigos escravizados pela
dívida. Locais, ruas, monumentos, arte, pessoas, são a matéria destes poemas
que nos levam de viagem até uma Grécia que é a de João Miguel Fernandes Jorge,
observada com um distanciamento que, creio, ingloriamente busca soltar-se das amarras
do tempo, pois também a arte e o conhecimento o convocam.
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