sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

O BUSÍLIS DA QUESTÃO

   Quando se trata de profetas, devemos separar o homem dos seus seguidores. Artaud nunca realizou o seu próprio teatro: talvez a força da sua visão resida no facto de ser a cenoura, à frente do nosso nariz, inalcançável. Ele próprio falava sempre de um modo de vida completo, de um teatro em que a actividade do actor e a do espectador fossem motivadas pela mesma necessidade desesperada. Aplicar Artaud é trair Artaud: traí-lo, porque só se explora uma parte do seu pensamento; traí-lo, porque é mais fácil aplicar regras ao trabalho de um conjunto de actores dedicados do que às vidas dos espectadores anónimos que entram por acaso pela porta do teatro.
   Ainda assim, da cativante expressão «Teatro da Crueldade» nasce uma busca tacteante de um teatro mais violento, menos racional, mais extremo, menos verbal, mais perigoso. Há um certo prazer nos choques violentos. O único problema dos choques violentos é o seu desgaste. O que se segue a um choque? Eis o busílis da questão.

Peter Brook, in O Espaço Vazio, trad. Rui Lopes, Orfeu Negro, 3.ª edição, Maio de 2016, p. 75.

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