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Roubo
a fala a Briobris, soldado da comédia “Os Estrangeiros”, de Sá de Miranda, datada
do século XVI. Briobris é um dos pretendentes da bela Lucrécia, musa de um
jurista rico, de um jovem e do soldado fanfarrão. Terminará com o jovem,
descoberta a relação de parentesco com o jurista rico. Fica o soldado a falar
sozinho, gabando-se de feitos improváveis. “E isto em dizendo, fazendo”. Interessa-me
nesta fala a relação possível entre o dizer e o fazer. Briobris pretendia-se crível,
pelo que procurava estabelecer uma relação directa entre o dizer e o fazer. Exige-se
a um soldado que seja corajoso, logo exige-se-lhe que respeite a palavra a ponto
de não temer colocar em xeque o próprio corpo. Era soldado, mas podia ser
poeta. Na poesia o dizer coincide com o fazer, não há separação entre palavra e
gesto, o que é dito fica feito, o realizado é o que se diz. E tal como o
soldado, todos os poetas são fanfarrões.
Poesia
e teatro estão intimamente ligados através desta relação com a palavra. De
resto, não é raro encontrarmos autores onde a palavra poética convive com a
dramaturgia. Podemos recordar Harold Pinter, Nobel da Literatura em 2005 por
nas suas peças “descobrir o precipício sob o murmúrio do quotidiano” (argumento
da Academia, talvez inspirado na poesia que o dramaturgo britânico também
escreveu). Bertolt Brecht, que toda a gente reconhece como um dos mais
importantes dramaturgos de todos os tempos, foi igualmente um belíssimo poeta,
tendo amiúde os seus versos o teatro como tema: «Por 3 000 Marcos por mês /
Está pronto / A encenar a miséria das massas, / Por 100 Marcos por dia / Mostra
ele / A injustiça do mundo» (O Comunista de Teatro). E não terá toda a obra de
Beckett sido erigida num lugar onde as fronteiras entre poesia e teatro deixam
de fazer sentido? Génios como Shakespeare ou Goethe ou Dante reforçam a nossa
crença nessa aproximação.
Não
se julgue, porém, que é apenas por terem escrito poesia e teatro, teatro
poético ou poesia dramática, que os mais diversos autores justificam a hipótese
de uma relação íntima entre as duas artes. Os jogos de linguagem aproximam-nas,
o exercício da palavra une-as, mas não só. Os poetas a quem Aristóteles se
refere na “Poética” são tanto os autores da epopeia como os da tragédia.
Ésquilo e Sófocles são poetas tal como Homero o foi, e o que os liga é a arte
de imitar. “O poeta é imitador”, disse Aristóteles, como mais tarde dirá
Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor”. Certamente não por acaso
encontraremos no livro de Peter Brook “O Espaço Vazio” a afirmação de que, «Num
certo sentido, o encenador é sempre um impostor». Sejam impostores, fingidores,
imitadores ou simplesmente fanfarrões, poetas e encenadores lidam com a palavra
num contexto metafórico, isto é, praticam as suas artes no domínio da
representação, da expressão, da alusão, da sugestão, tendo sempre a palavra como
matéria elementar.
Podemos
supor um teatro sem palavras, assim como uma poesia visual, uma poesia
fonética, uma poesia onde a dimensão semântica da linguagem ceda a outras
dimensões. A mímica não é menos teatral por se servir da linguagem gestual,
como pôde concluir quem aqui assistiu este ano à peça “Dois Narizes num Mar de
Plástico”. Em 1916, um grupo de jovens insurrectos, cansados da guerra, lançava
as sementes daquilo a que hoje damos o nome algo pomposo de dadaísmo. A muitas
das provocações dadaístas o público correspondeu atirando ovos podres sobre os
intervenientes, causando o escândalo que era, assumamos, o fim último da
intervenção Dada. Estavam cumpridos os objectivos. “Niilistas de salão” para
Camus, mistificação grotesca para alguns, terroristas para outros, certo é que
afirmaram o seu lugar na história fazendo o que prometiam: soirées onde
misturavam recitação de poemas, declamação de manifestos, exposições,
realizações cénicas. Fundindo vida e poesia, transformaram-se eles próprios
naquilo que representavam. Os poemas lidos no Cabaret Voltaire tinham uma
função pública, o significado de “Karawane”, de Hugo Ball, era tresmalhar as ovelhas
do rebanho até que deixasse de haver rebanho.
Antes de julgarmos o propósito de tais intervenções, devemos ter em
conta a colheita proporcionada. O surrealismo foi um dos frutos. E com ele,
sobrepondo-se a ele, o “Teatro da Crueldade” de Antonin Artaud. Em 1933,
apresentou-se a público com a conferência “O Teatro e a Peste”. Anaïs Nin
assistiu e descreveu no seu diário a sessão na Sorbonne. Sala apinhada, Artaud
desvia-se do texto começando a interpretar o papel de um homem a morrer de
peste, “representava uma agonia”, “esquecia a conferência, o teatro, as suas
ideias, (…) o público”, berrava, delirava, representava a sua própria morte.
Primeiro expectantes, as pessoas começaram a rir. Depois assobiaram. Por fim,
abandonaram a sala em ruidoso protesto. Vaias que aparentemente não intimidaram
Artaud, que no final da sessão confessou desconcertado a Anaïs Nin: «querem
ouvir uma conferência objectiva sobre o teatro e a peste, ao passo que eu quero
oferecer-lhes a própria experiência, a própria peste, para ficarem
aterrorizados e acordarem. Quero acordá-los. Não compreendem que estão mortos»
(Eu, Antonin Artaud).
Acerca da poesia, no ensaio “Basta de Obras Primas”, o próprio Artaud
reivindicava: «Temos de nos libertar desta superstição dos textos e da poesia
escrita. A poesia escrita merece ser usada uma vez e devia destruir-se depois»
(O Teatro e o Seu Duplo). Perante experiências tão radicais e violentas, faz
sentido a questão colocada por Peter Brook: «O único problema dos choques
violentos é o seu desgaste. O que se segue a um choque?»
Os
mais pessimistas dirão que a seguir a um choque vem a morte, os mais optimistas
acreditarão no restabelecimento de todas as faculdades, numa recuperação
seguida de renovação. Chegamos, assim, ao espaço vazio, à ideia de um lugar
onde faça sentido a representação, onde o conflito dinamize o espírito criativo
permitindo que a palavra se transforme em acto. A ideia de um teatro enquanto
espaço poético não se coaduna com a imagem do teatro enquanto mera sala de acolhimento
da poesia, espécie de centro de dia para artes à espera da capitulação. O
teatro é, sempre foi, desde a sua origem até às experiências mais radicais, um
lugar onde a poesia se fez, se faz, em confronto com o status quo.
Se o
cinema matou o teatro, como por vezes ouvimos, ou se a televisão deu cabo do
cinema, como noutras ocasiões é dito, o que nos restará com um exterminador
implacável em cena chamado Internet? Tento imaginar uma resposta observando as
minhas filhas. A mais nova, com 12 anos, ocupa grande parte do seu tempo a editar
vídeos no Instagram. A mais crescida, com 15 anos, passa horas a ver séries no
Netflix. Também cantam, tocam instrumentos, pintam, lêem de vez em quando, mas
a fatia mais generosa do tempo livre de que dispõem é distribuído por Instagram
e Netflix. Têm centenas de livros em casa aguardando uma oportunidade que,
espero, chegue mais tarde ou mais cedo. A questão é: como pode o livro
chegar-lhes? Como pode o teatro cativá-las? O que deverá ou poderá ser feito
para que elas desejem sair de casa, largar os computadores ou os telemóveis ou
os 1001 canais de televisão ao dispor, com o intuito de assistir a uma peça de
teatro? Enquanto pai, só tenho uma resposta para isto: é levá-las ao teatro.
Mostrar-lhes que há mais mundo para lá do Instagram e do Netflix. É provável
que no futuro sejam elas a lembrar-me: há muito que não vamos ao teatro. E se
fôssemos?
Durante o ano corrente realizámos aqui neste espaço um ciclo de poesia.
Escolhemos um dia improvável, a terça-feira, para uma vez por mês oferecermos
às pessoas a possibilidade de contactarem com a poesia. Queríamos saber quem
são os poetas do nosso tempo, o que procuram, o que andam a fazer, como o
fazem, por onde anda a palavra poética. Escutámos poetas, editores de poesia,
partilhámos dúvidas, lemos em conjunto. Enquanto autor, confesso, eu pretendia
saber algo mais. Queria saber como adeririam as pessoas a uma experiência
destas. Por isso sugeri a terça-feira, por me parecer aquele dia em que apenas
sairia de casa para ouvir poesia quem desejasse mesmo ouvi-la. E qual não foi o
espanto ao constatar que de sessão para sessão mais gente chegava, novos rostos
apareciam, a assistência aumentava, renovava-se e participava demonstrando
interesse e gratidão.
O
André, estudante da ESAD, agora de regresso à Madeira Natal, quis dizer-me que
era das melhores experiências que levava da passagem por Caldas da Rainha. A
Margarida telefonou-me depois da sessão que dedicámos ao Rui Costa, só para
manifestar quanto lhe foi grato poder-nos ver evocar um amigo desparecido
sempre com um sorriso no rosto. Também nisto o teatro é um espaço poético,
permite que emoções e sentimentos sejam partilhados em absoluta liberdade, sem
constrangimentos. Se não for um Teatro do Aborrecimento Mortal, aquele em que o
espaço cénico é vedado à poesia.
As
possibilidades da poesia no teatro são múltiplas, restando saber quais as
possibilidades do teatro no teatro. Se, como pudemos constatar, o poema
continua a acontecer nos espaços mais diferenciados, incluindo redes sociais,
se as guerras entre poetas se mantêm vivas a despeito de disparates irrelevantes
e querelas pueris, o que podemos esperar do teatro? Obrigo-me a ser cauteloso
no optimismo, pois há muito venho declarando a morte da poesia — sem sucesso
junto dos meus pares (que insistem em escrever e publicar poemas), mas com
enorme sucesso junto de milhões de portugueses que talvez saibam que Camões
escreveu “Os Lusíadas”, mas nunca leram um poema na vida e estão longe de
imaginar quem terá sido Sá de Miranda.
Na
verdade, a proliferação de websites dedicados à poesia não garante um interesse
alargado pela poesia. São raras as tiragens no nosso país que superam os 300
exemplares, inúmeros poemas são partilhados na rede todos os dias como quem
partilha um mero adereço, cópias de cópias de cópias que não garantem vendas a
quem publica. O Facebook talvez seja o Café Nicola dos Bocage de hoje, ainda
que privado dos cheiros, ruídos, estímulos oferecidos por um espaço público
onde da energia da discussão surdem actos criativos. Se os espectadores
diminuem, se as funções do teatro se alteraram, se a sociedade de consumo e a
infantilização das massas deu cabo do teatro, é seara em que não pretendo meter
foice. Mas enquanto cidadão cabe-me questionar o que pretendemos em termos de
cultura para a sociedade em que vivemos. Posso fazê-lo, devo fazê-lo, sob pena
de acabar renegado como o soldado Briobris a gabar-me de feitos inconsequentes.
Em
que ponto estamos? O que pretendemos para a cultura numa sociedade democrática?
Aqueles que querem entregar a produção cultural à sua sorte têm à mão vários
indicadores sobre tendências de gosto e inclinações sociais. Artigo recente
revela que o maior site pornográfico do mundo (Pornhub, caso estejam
interessados) foi visitado por cerca de 90 milhões de pessoas todos os dias
durante o ano de 2018, o que perfará no final do ano cerca de 33,5 mil milhões
de visitas. O interesse do público só diminuiu com o casamento de Meghan Markle
e príncipe Harry, registando também o site quebras durante as finais do Mundial
de Futebol e da Liga dos Campeões. Em matéria de televisão, toda a ordem de
reality shows e quejandos, tais como Love On Top, Secret Story, Big Brother,
Casados à primeira vista, são de uma popularidade que leva a sentir saudades de
telenovelas. Para uma certa elite empresarial, este é um mundo de sonho. Resta
saber o que será para políticos eleitos por maiorias. Deveremos entregar a
democracia à ditadura do consumidor? Deverá o show prosseguir sob o jugo do
business?
Não
me passa pela cabeça julgar que um espectador de teatro não possa dar uma
escapadinha pelo Pornhub, anhando alguns minutos frente a um ecrã onde a
realidade é exibida sem filtros. E se já não tenho ilusões quanto à
desproporção de popularidade entre uma Stormy Daniels e uma Isabelle Huppert,
continuo a alimentar a crença de que a arte tem uma função a desempenhar
socialmente. Em si mesma a sobrevivência da arte não é o problema, o problema é
a sobrevivência de quem a faz. Para que possa ser um órgão vivo no corpo
dinâmico da cultura, a arte carece de artistas empenhados, de poetas
fingidores, de encenadores impostores, de dramaturgos imitadores, que desbravem
o território selvagem da realidade abrindo caminho ao pensamento, ao espírito
crítico, ao debate, à discussão, sem os quais nenhuma democracia sobrevive. A
não ser que se pretenda de fachada.
O
combate à chamada sociedade de espectáculo, reinado autocrático da economia
mercantilista, como queria Guy Debord, faz-se no domínio de uma resistência à
estupidificação generalizadora e hipnotizante das massas que elegem quem nos
governa. Se a democracia impõe o respeito pela vontade maioritária, precavendo
os direitos das minorias que se lhe opõem, então é crucial o papel que teatro e
poesia desempenham na promoção de lugares onde a palavra magoe, replique a
brandura dos costumes, possa de facto combater os pequenos déspotas instalados
e os grandes que se avizinham, despertando para o espanto e para o espírito
crítico. Não há outro caminho para uma sociedade livre que não seja o de
garantir que a liberdade prevaleça independente de tendências genéricas e de
gostos momentâneos, uma “liberdade livre” de constrangimentos económicos e
mercantilistas, solta dos grilhões do mero entretenimento. A produção artística
livre não garante por si só a democracia, ma reforça-a. E contribui para que a
cultura não se cristalize em estatuária e dias comemorativos, como uma
relíquia.
Termino com a evocação de um filme de cowboys, “McCabe & Mrs.
Miller” (1971), de Robert Altman. Warren Beatty é McCabe, Julie Christie faz de
Mrs Miller. É tudo lamacento, sujo e andrajoso nesse filme, tal como no Teatro Bruto
teorizado por Peter Brook. McCabe e Mrs. Miller resolvem abrir um bordel na
cidade, encarregando-se ele do jogo e ela do sexo. A certa altura, McCabe diz:
«Tenho muita poesia dentro de mim. Só não a meto no papel. Sou suficientemente
inteligente para não o fazer». Tão inteligente, que acabará por morrer de amor
enfrentando os monopolistas da região. E isto em dizendo, fazendo.
1 comentário:
Muito interessante o texto.
Venham mais destas reflexões.
Um abraço.
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