domingo, 30 de dezembro de 2018

O CULTO DAS PEDRAS


Algures entre Alpalhão e a Barragem de Póvoa e Meadas, que é como quem diz entre Nisa e Castelo de Vide, a água corre em ribeiras cristalinas. Nas margens, avistam-se rebanhos de ovelhas e cabras e vacas em pastorícia. As ovelhas confundem-se com as pedras. Podíamos dizer das pedras que são rebanhos de ovelhas fossilizadas, podíamos dizer das ovelhas que são rebanhos de pedras animadas. Quer optemos por uma ou por outra das versões, sabemos quanto nenhum destes rebanhos se assemelha em matéria de poesia aos que quotidianamente pastoreamos no centro comercial. 


São inúmeras as antas e inúmeros os menires sinalizados nestas paragens. Estacionamos para contemplar o calhau. A Matilde diz que é só uma pedra como outra qualquer, a Beatriz refere cultos fálicos da fertilidade. Há ainda a questão da morte, associada aos dólmens. Fertilidade e morte têm formas diferentes. Por onde quer que peguemos no assunto, importa sublinhar que não são pedras como outras quaisquer. Pegamos numa ao acaso e questionamos: qual a diferença entre esta pedra e aquela? A verticalidade do calhau transpira humanidade, há qualquer coisa de humano naquelas pedras que não existe nas outras. Nas vulgares.



A mesma humanidade pode ser observada nas pedras que pisamos, nos azulejos com que adornamos paredes, na necessidade de embelezar e de premiar o embelezamento registando-o:


Já não visitava Castelo de Vide há muitos anos. Da última vez, nuns perdidos anos 90, as termas ainda funcionavam. Restam as fontes. Assim como os motivos religiosos, a perseguirem-nos o olhar para onde quer que olhemos. Algumas lojas da praça principal parecem conservar o mesmo aspecto de há cinquenta anos, uma octogenária diz-nos trabalhar ali há meio século. Na judiaria, a caminho do castelo, ou no burgo medieval, tudo adquire a consistência de um fragmento histórico.



No que se supõe ter sido uma sinagoga, um pequeno museu evoca a presença judaica com sentida dignidade. Conservam-se artefactos e nomes, ambos são resquício de passagem, marcas deixadas para o futuro como pedras. Não há qualquer diferença entre os nomes evocados e as pedras que mantêm viva a memória de um passado glorioso, defendido entre muralhas. 


Mistério insolúvel na mente desprovida: como foi possível chegarmos aqui? Pedra sobre pedra, corpo sobre corpo, palavra sobre palavra. Sobre o corpo, uma pedra. Sobre a pedra, uma palavra. E o que restará para colocar sobre a palavra? A ruína de um sopro?


A imagem não faz justiça ao belíssimo castelo de Marvão, mas é das primeiras que encontramos junto a uma casa com placa de poeta: João Apolinário. Ali morreu em 1988, depois do exílio no Brasil e da prisão e tortura em Peniche. Mais adiante, uma escultura de João Cutileiro evoca Ibn Maruán, fundador de Marvão no século IX. Sufistas, judeus, cristãos, terra de confluências é este nosso pequeno país. Desde o tempo das pedras. E essa é, mais do que qualquer outra, a nossa essência. Essência de sangue misturado, como na cisterna abobadada se misturam sons em vibração de terra água e ar. O fogo somos nós. Não sei o que mais me impressiona, se a terra a perder de vista, se o céu a perder-se na terra, se o vento estendido nas pedras como água num rosto.




Cá em baixo, o que sobra de Ammaia não deve envergonhar os romanos. Diziam-nos ingovernáveis, talvez tivessem razão. Mas deles perdura diariamente na nossa mente a palavra, e através da palavra os modos de pensar. É deles o sistema circulatório do pensamento português. E isto tudo misturado, esta coisa dita lusíada. Dois pormenores deliciosos do espólio romano:




O mais são ruínas entre pastagens, estruturas escavadas a pincel, vegetação, fauna local, romãzeiras secas, castanheiros desnudados, uma história para contar aos netos sobre ocupações, cultos perdidos, venerações ancestrais.


Não tenho nenhuma nostalgia dos impérios, julgo que tudo poder ser grandioso se aprender o pequeno lugar que ocupa no mundo. 


Gosto dos menires como aprecio as ruínas de um templo, mas em nada julgo inferior uma mulher dentro de uma árvore. Pedras que em algum momento, num qualquer lugar, tiveram o seu período de respiração. Outrora, agora.

5 comentários:

Unknown disse...

Fui com este texto reconduzida a um passado ainda muito presente. Obrigada, pois consegui sentir as cores, os sons e os cheiros...

hmbf disse...

Ao alto ainda se avistam capelas. Saúde,

alexandra g. disse...

se aprecias roteiros temáticos (nos quais as diferenças são excepcionalmente surpreendetes, faz com família & amigoas a rota das aldeias históricas, praticamente todas na raia, onde sentirás algo, tenho a certeza, que eu senti: os idosos, tão poucos, encantados, rodeando-vos, as suas histórias, o que não vem nos livros :)

hmbf disse...

Grato pela sugestão. Mas eu é mais ir ao encontro, sem roteiro. E o que acontecer, aconteceu. Conheço algumas dessas aldeias. Na secção intitulada "spleen", linkada ali ao lado, há memórias partilhadas dessas paragens. Bom ano.

alexandra g. disse...

também para ti e para os teus, Henrique, um 2019 com aquilo que exactamente desejam, mais as surpresas, em bom :)