terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O PROBLEMA DA PERFEIÇÃO

   O problema da perfeição como completude obcecou o pensamento cristão quando este precisou de definir como ressurgiriam os corpos dos defuntos no dia do Juízo Final: íntegros como eram em vida, decerto, mas em que momento das suas vidas? Como eram aos vinte ou aos sessenta anos? No momento da morte, digamos: e se no momento da morte não tivessem um braço ou estivessem completamente calvos, ressuscitariam nesse estado?
   Na quaestio 80 do Supplementum, São Tomás pergunta-se se os intestinos ressuscitarão, que são certamente órgãos do corpo humano, mas que não poderiam ressurgir cheios de imundície e muito menos vazios, pois a natureza tem horror ao vácuo. E o braço de um ladrão justamente amputado, caso ele depois se penitencie e se salve, poderá ser recuperado mesmo não tendo cooperado para a salvação do arrependido? Também não poderia ser eliminado, pois essa falta puniria alguém que passou a ser beato. Tomás responde que, assim como a obra de arte não seria perfeita se lhe faltasse algo que a arte exige, também é preciso que o homem ressurja perfeito e, portanto, é necessário que todos os membros realmente existentes no corpo sejam reconstituídos na ressurreição.
   Portanto, os intestinos ressurgirão cheios, não de ignóbeis dejectos, mas de nobres humores. E, quanto ao ladrão, embora o membro amputado não tenha cooperado para que o homem conquistasse a glória merecida posteriormente, ele merece ser premiado com todas as suas partes.
   Mas ressurgirão os cabelos e as unhas? Diz-se que são produtos, como o suor, a urina e os outros excrementos, do alimento supérfluo e que certamente não ressurgirão com o corpo. Mas o Senhor disse: «Mas não se perderá um só cabelo da vossa cabeça.» Os cabelos e as unhas foram dados ao homem como ornamentos, Ora, o corpo humano, especialmente o dos eleitos, deve ressurgir em toda a sua beleza. Deve, portanto, ressurgir com cabelos e unhas.
   Contudo, pelo contrário, os genitais não ressurgirão, visto que no paraíso «nem eles se casarão, nem elas serão dadas em casamento», como não ressurgirá o esperma, que não serve à perfeição do indivíduo, como os cabelos, mas apenas à perfeição da espécie. Ou seja, no paraíso será possível fazer tranças, mas amor, não.


Umberto Eco, in Aos Ombros de Gigantes, tradução de Eliana Aguiar, Gradiva, Outubro de 2018, pp. 287-288.

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