segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

UM POEMA DE LUIS GARCÍA MONTERO


AS LIÇÕES DA INTIMIDADE

Sei agora que estarás num poema, 
num poema meu,
o último, os versos da neve,
banhados ainda pela luz
que decifra as coisas deste mundo
e pela obscuridade calada dos remos,
para que tu caminhes sobre a água
até chegar ao centro da terra,
nua e decisiva,
atravessando o horizonte
tal como os corredores da casa.

São as lições da intimidade.

O azul mais ferido de setembro,
os castanheiros avermelhados,
a solidão doméstica das fotografias,
a pele dourada
dos aniversários,
o esplendor do céu, dos montes
ao cair da tarde,
dispostos a confessar,
com a mão no ombro
repetem-me
essa verdade de amor que só conhecem
os amantes que foram atraiçoados.

E a vida impõe-se
pela debilidade das suas palavras.
É o que nos ensinam as leis naturais.

Estrangeiro na própria intimidade,
não conhecem o meu nome
nem as margens da plenitude,
nem o cadáver do tempo escondido nas ondas.
Mas entendem a forma dos meus passos
na areia que cai,
se confundo o relógio com o deserto
ou vigio a casa tal como ao horizonte,
e na minha taça de dúvidas cabe o mundo,
e no valor encontro cobardia,
nos olhos a noite com a sua luz
e o coração da criança
numa alma de antigas corrupções.
Porque ali as paisagens são sonhos meditados
para que o horizonte
adormeça no corredor de uma casa.

A intimidade diz-nos que há amores estranhos,
estranhos como um rio sem cidade,
como alongadas noites em que se adivinha
que se torna impossível a traição
uma vez que aprendamos
a perdoar traições e verdades.


Luis García Montero nasceu em Granada no dia 4 de Dezembro de 1958. O poema acima transcrito, incluído no livro A Intimidade da Serpente (2003), foi copiado da antologia As Lições da Intimidade (Abysmo, Maio de 2018), com selecção, apresentação e tradução de Nuno Júdice. Além desse volume, foram contemplados nesta antologia os livros Tristia (1982), O Jardim Estrangeiro (1983), As Flores do Frio (1991), Quartos Separados (1994), Completamente Sexta-Feira (1998), Vista Cansada (2008), Um Inverno Próprio (Considerações) (2011), À Porta Fechada (2017). Sobre esta poesia, diz Nuno Júdice:

   Na sua poesia, Luis García Montero dedica-se a uma procura de olhar o mundo a partir de uma poética que se pretende exacta, utilizando uma captura do real que se pode descrever como fotográfica, no duplo aspecto de imagens tão nítidas como as do híper-realismo norte-americano, ou por vezes esfumadas, no sentido impressionista, quando as contaminam a dor subjectiva de um tempo que passa e o sentimento do prazer ou do desgosto da vida em todos os seus aspectos. O domínio pleno da escrita, natural em quem é igualmente um grande leitor e crítico de poesia, sustenta a precisão dessa forma que, desde o início da sua obra, se converteu em modelo e inspiração para novos poetas em Espanha, e noutros países e continentes, na base desse conceito poético de «poesia da experiência». É sem dúvida um registo marcante dessa década de oitenta, mas seria redutor confiná-lo a essa proposta inovadora das primeiras décadas da Espanha democrática. O que hoje podemos confirmar é o modo coerente como Luis García Montero, a partir desse registo marcado pela sua proximidade ao facto detonador do poema, prosseguiu uma reflexão sobre o jogo de antinomia entre a memória e o presente

As Lições da Intimidade é um exemplo entre muitos do interesse dos editores portugueses pela poesia publicada em Espanha, ao qual podemos juntar este ano Coração Desabitado (Averno, Maio), de Amalia Bautista, Privilégio de Penumbra (Abysmo, Junho), de Felipe Benítez Reyes, ou A Vida em Chamas (Língua Morta, Abril), de Luis Alberto de Cuenca.

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