quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

CYBERPUNKS E COWBOYS


Chego finalmente a The Girl With The Dragon Tattoo/Millennium 1: Os Homens Que Odeiam as Mulheres (2011), adaptação de David Fincher (n. 1962) do primeiro volume da famigerada trilogia do nórdico Stieg Larsson. Se não sou especialmente fã do género em livro, aprecio-o sobremaneira em filme. E Fincher já nos ofereceu garantias de qualidade. A sua linguagem começa por ganhar consistência na realização de videoclips, sendo a música uma das componentes mais fortes transportada desse universo para a longa-metragem. Filmes como Alien 3 (1992), Se7en (1995), The Game (1997), Panic Room (2002) e Zodiac (2007) ajudaram a consolidar a aura de mestre do suspense nos nossos tempos. The Girl with the Dragon Tattoo tem contra si Daniel Craig no papel do jornalista Mikael Blomkvist. É uma embirração pessoal, aqui justificada pelos inegáveis tiques de agente "double 0 seven" de que o autor não se conseguiu libertar. O tom ligeiro do agente ao serviço de sua majestade não convém nada ao jornalista caído em desgraça do romance de Larsson. Felizmente estão por perto Christopher Plummer e Stellan Skarsgård para salvarem a honra do convento. E, mais que todos, acima de todos, está a surpreendente Rooney Mara no papel de Lisbeth Salander, tão fragilzinha que parece nas fotografias, tão vigorosa que se apresenta na tela. Gosto destas personagens desviadas com uma sabedoria acima da média, tipos com historiais de vida desgraçados que se revelam inteligentíssimos contras as expectativas mais doutrinais do comportamento. Recordo, a título de exemplo, o Good Will Hunting (1997) de Gus Van Sant (n. 1952). A Lisbeth Salander a quem Rooney Mara oferece consistência é uma dessas personagens onde a fragilidade e a capacidade de resistência estão em constante duelo, jamais sendo perceptível qual delas poderá sair vencedora porque, no final, a solidão tomará conta de ambas. O crime desvenda-se, mas a heroína da história acaba só. Bom final.

Também vi ontem, pela primeira vez, The Claim/Ameaça do Passado (2000), incursão de Michael Winterbottom (n. 1961) pelo western. Do realizador britânico recordo com especial interesse 24 Hour Party People (2002), recriação do ambiente explosivo que esteve na origem da cena musical de Manchester. Curiosamente, The Claim é anterior. A história baseia-se num livro de Thomas Hardy (1840-1928) que já tinha inspirado uma série de televisão em 1978 e um filme, também para televisão, em 2003, com o título original The Mayor of Casterbridge. Winterbottom parece ter uma predilecção pelo pessimista inglês, já que em 1996 adaptou-lhe outro romance com o filme Jude. The Claim transporta-nos para dois temas complementares na história do western, a chamada febre do ouro e a monumental construção da ferrovia. Algures num pequeno povoado atapetado de neve, um pioneiro troca a mulher e a filha bebé por uma concessão onde pretende encontrar ouro. Mais tarde, rico e com toda a povoação local a seus pés, é revisitado pela ex-mulher e pela filha já crescida. Só ele e a ex-mulher sabem do sucedido, encontrando-se esta gravemente doente. Nastassja Kinski, que até a vomitar sangue não perde a compostura, é a Elena Dillon outrora trocada por ouro. Peter Mullan tem a seu cargo o exigente papel de Daniel Dillon, mas falta-lhe estaleca. O homem atormentado pela consciência do passado nunca surge convincente. Quem também não passa despercebida é Milla Jovovich, no papel muito justo e agradável de se contemplar de dona de bordel. Infelizmente para nós, Winterbottom coloca-a a cantar fado em duas cenas de péssima memória. Wes Bentley vacila como um sinal intermitente na postura determinada a que está obrigado e na figura de galã desenxabido a que as circunstâncias obrigam. A música de Michael Nyman, neste caso, também não ajuda. Ao desviar-se dos excessos de violência tantas vezes acusados no western, Michael Winterbottom resvala para um excesso de romantismo nada cativante. Num género que se quer essencialmente apaixonado, ele moraliza. São demasiados os coitadinhos, os casamentos improváveis, os amores inverosímeis. Neste sentido, tem mais de western a personagem de Lisbeth Salander do que qualquer uma das aqui representadas.

Sem comentários: