sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

AO OUVIDO DO DIABO


Do pacto entre Dr. Fausto e Mefistófeles herdámos uma paixão cega, consumada pela criação de ferramentas que prometendo o caminho dos céus vêm transformando a terra num Inferno. Se a Revolução Industrial modernizou as técnicas de servidão, transformando a paisagem das cidades em acumulações de lixo produzido para satisfação da avidez consumista, a Revolução Tecnológica permitiu transpor fronteiras espaciais, acelerar os ritmos, estendendo pelo mundo inteiro o tapete imundo das nossas cidades industrializadas. O progresso está à vista, incluindo dos cegos, eloquentemente simbolizado pelo ventre descerrado de uma Moby Dick a rebentar já não de óleos e gorduras, mas de plásticos. Os negativos da ruína há muito sustentam os laboratórios da poesia, mas nunca é excessivo lembrá-lo assinalando revelações que vêm surgindo a partir desses mesmos negativos. Quem sussurra Ao Ouvido do Diabo (Companhia das Ilhas, Novembro de 2018), desta feita, é Rui Xerez de Sousa (n. 1979), poeta familiarizado com os domínios da representação teatral. Ainda que nos seus poemas sejamos tentados a desvendar um teatro de guerra, não é pelo lado dramático que melhor se nos impõem. Escutemos o poema que oferece título ao conjunto:

AO OUVIDO DO DIABO

Nem mesmo sei por que somos amigos.
Talvez por partilharmos a frieza de quem trocaria tudo
por um amanhã com migalhas de sonho.
Talvez porque num dia cinzento
vendemos à melhor oferta
os deuses que nos quiseram impingir
e diante de um deserto só nosso
sussurrámos ao ouvido do diabo:
Tudo isto pode ser teu…

   Logo no primeiro verso é-nos sugerido um outro subjectivo, próximo do sujeito poético por amizade. Como certa apresenta-se igualmente a transacção de deuses impingidos por terceiros, da qual resultou um deserto particular. É o processo de secularização a que fomos sujeitos, simbolizado também por pactos com o demónio que nos desampararam a queda e aumentam incertezas aqui ilustradas pelo uso repetido do advérbio de dúvida. Mas tal hesitação é superada noutros poemas pelo tom declarativo dos versos. Tanto em Nunca Serei Um Poeta como em Escrevo Umas Coisinhas, primeiro e último poemas do livro, há uma afirmação da escrita enquanto fuga ao tédio, descomprometida e sem redes, ciente de limitações que não deixam de ligar-se a uma imagem algo batida do que possa ser isso de “ser-se poeta”. O que importa salientar é o descomprometimento, a despreocupação, até um voluntário desleixo lírico do autor na declaração dos seus propósitos. 
   Noutras ocasiões, a actualidade intromete-se no poema fixando-o temporalmente: «Deixaremos de ser escravos na falência da Europa sonho de reis decapitados / enquanto Inna Shevchenko ao derrubar a cruz de Holodomor grita FREE RIOT / sonhando-se talvez La liberte guidant le peuple» (p. 7). Anárquica, voluntariosa, heterodoxa, iconoclasta, esta poesia traduz um sinal destes tempos em que apenas a besta parece apta a dizer a verdade. E essa verdade é cruel, bruta, desmistificadora, violenta, é uma verdade niilista onde se pressente a falência do papel humano no curso da História: «Sherlocks de segunda a ver quem é que estragou tudo. Mas o tédio é o menos. / Malhas dois copos de whisky e já és o Colombo num assombro de novo mundo. / Mas depois, / ultrapassa-nos o naufrágio de sermos apenas isto: / reféns numa história ridícula. Uma vida juntos e nem um olhar» (p. 13). Já o poema Álbum de Memórias pode ser lido como uma sátira ao Portugal desta época, enquanto em muitos outros se faz tábua rasa da moralidade hipócrita que contamina relações familiares e sociais. 
   Na ironia latente vislumbramos momentos de frustração e, como refere Abel Neves no posfácio, «um afiar de lâmina para um qualquer ajuste de contas». Os poemas imprimem uma urgência do dizer que nos leva a pensar numa qualquer linha de separação entre a normalidade e a loucura que foi apagada, restando os destroços da doença e da alienação, os efeitos do estado do mundo no estado de um homem. A fotografia da capa é de Jorge Aguiar Oliveira, e dialoga lindamente com o poema seguinte:

A LINHA

A minha mãe gritava da janela
gesticulando aflições
Cuidado ao atravessar a linha!
E eu sonhava com engarrafamentos
comboios de buzina grave num trote de manada africana
e ao volante
jovens coquetes de macacão e cigarro slim nas ventas.
Mas nem isso. Apenas uma linha deserta.
Sempre nos perguntámos onde ficaria o seu fim.
Chegámos a colocar pedregulhos para descarrilamentos
e se o comboio parar a tempo
ameaçamos o maquinista:
Leve-nos ao fim do mundo!
E ai dele se não levar.

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