quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

DÉJÀ VU


   Ouvi dizer que Lisboa estava a arder, que as chamas chegavam a Setúbal, que os pretos e os ciganos haviam invadido a Avenida da Liberdade (parece que os ciganos não), revirando tudo, partindo montras, incendiando autocarros, esquadras da polícia, viaturas civis, um caos. Fui ver. Há muito que me interesso por estes fenómenos e ansiava por este dia, anda sempre tudo tão calmo no nosso país. Excepto nas redes sociais. Aí, diz-me quem lá anda, é só bastonada e gente a atirar pedras e a disparar tiros de disparates. Meu Deus, o que há de violência nas redes sociais. Os Hospitais das redes sociais não devem ter mãos a medir com tanto ferido, com tanto sangue, com tanto rasgão na carne.
   Fui ver. Cheguei espantado com a calmaria no trânsito. À excepção de dezenas de trotinetas abandonadas pelos passeios e um enxame de tuk-tuks a transportarem asiáticos, nada vi de anormal. Mas logo a primeira pessoa com quem falei me disse ser absolutamente normal nos dias de hoje, assim como é normal a especulação imobiliária, gente posta fora de casa por não conseguir suportar os aumentos de renda, uma confusão de gananciosos sequiosos do dinheiro dos turistas que faz a vida negra aos portugueses. Qualquer dia, disseram-me, não haverá lugar para os portugueses no centro de Lisboa. A não ser para aqueles que aí se desloquem com a missão de transportar hordas de asiáticos. Vim-me embora de Lisboa há 18 anos, vai fazer 19, porque já naquele tempo não estava para viver na confusão. Imagino o que seja agora. Mas isto passa, tenham esperança. 
   Seja como for, quis ver a revolta dos excluídos, das vítimas de racismo, quis ver a polícia a actuar em tempo real. Infelizmente chego sempre atrasado a tudo. Não vi nada que não tivesse visto já. Histórias de agentes da autoridade a abusarem da autoridade é o que não nos falta, histórias de civis a faltarem ao respeito à autoridade dos agentes é o que não nos falta. Como nem tudo são histórias, bairros ditos problemáticos também não faltam, agentes sem receio de actuar devidamente nesses bairros talvez vão escasseando. O que haverá de novo, então, que tanto agita os corações humanos? Cheira-me a explosão, mas ainda o rastilho mal foi ateado. O que será que temos nestes últimos anos que possa ser digno de nota? 
1.º Uma geração de portugueses nascidos em Portugal que não se sente portuguesa, quer por ser alvo de segregação racial, que existe, quer por mal conhecer o país para lá das fronteiras do bairro onde reside, bairros quase sempre degradados e para os quais os restantes portugueses olham com desconfiança e medo, o que em nada contribui para a integração social das pessoas que aí vivem; 
2.º Um intenso fenómeno de gentrificação que está a atirar toda a gente para a periferia da periferia, causando choques inevitáveis e problemas de comunicação agravados pela frustração económica e social; 
3.º Um claro desenvolvimento de atitudes racistas e discursos xenófobos no interior das forças de segurança pública, o qual me parece mais subtil do que tem sido dado a ver em notícias de acusações de tortura e uso excessivo de violência; 
4.º Uma sociedade evidentemente mais agressiva e sem filtros morais, com gravíssimas deficiências ao nível da educação e, por consequência, com problemas evidentes de integração num mercado de trabalho que desde muito cedo faz as pessoas sentirem que estão a ser exploradas; 
5.º Uma comunicação social desesperada que sobrevive da exibição inadvertida do que venda, sangue, morte, crime, tragédia, empolando fenómenos banais de risco que facilmente se podem transformar, como uma bola de neve, em avalanches incontroláveis;
6.º E, por fim, há toda uma classe política que pretende capitalizar com este tipo de situações, uma classe que medra nos media, aí cresce, se mostra, sempre com discursos agressivos e intolerantes que vão ao encontro dos medos, anseios e receios das populações. 
   Portanto, até ver, é isto. E isto não muda com falinhas mansas no poder e discursos inflamados no café.


Adenda: sobre este tema, ler o Ricardo António Alves: aqui.

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