quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

CARTAS & OSTRAS



   Comecemos pelas ostras, que dão sempre boa entrada. Paulo da Costa Domingos (n. 1953), escritor, editor, antiquário de livros, organizou Ostras, Doc. Interno (Janeiro de 2019, Viúva frenesi) enquanto relatório para distribuição pública «por ocasião da mostra evocativa dos quarenta anos da frenesi na Biblioteca Nacional». Carimbo no cólofon informa: cancelada. Assim mesmo, sem mais. A frenesi é uma das relevantes casas editoriais portuguesas do século XX, nascida em relação de proximidade com a & etc de Vítor Silva Tavares. O legado impressiona qualquer amante de livros, não só pela poesia portuguesa e pelas traduções. Ao cuidado gráfico aliou-se, desde a primeira hora, uma atitude desafiadora com polémica garantida e alguns momentos hilariantes. A memória de um desses momentos foi agora recuperada, não fosse o olvido fazer das suas numa época que cada vez mais se exibe sem passado nem futuro.
   Convém declarar acerca dos dois objectos que motivam este texto serem eles testemunho e tomada de posição. Testemunho enquanto contributo para uma história que vale a pena inscrever e tomada de posição sobre o momento actual, o qual se afigura, pela vertigem dos acontecimentos e aceleração dos fenómenos, cada vez mais indiferente a um passado do qual não pretende colher exemplos nem lições. As consequências são óbvias, com meticulosas omissões e uma capacidade selectiva anormal a fazerem a cama a um estado de coisas que já nem pode ser acusado de revisionista. Porque não revê nada, é pura rasura ao serviço da ignorância e, por consequência, de poderes hegemónicos a quem essa ignorância não só convém como serve. Se assim é a nível político e social, poderia não o ser no mundo das letras?
   Precisamente contra tais poderes hegemónicos surgiu há 40 anos e foi crescendo até hoje a editora frenesi, agora Viúva frenesi. Do catálogo, um dos livros que deu que falar foi o anónimo Subsídio, Suicídio, Ostras Geladas (frenesi, Março de 1998). A questão da autoria era ali omissa com o propósito específico de deixar à nora a crítica literária, objectivo alcançado como o comprovam as recensões agora elencadas por Paulo da Costa Domingos. O “autor desconhecido” aguçou a imaginação, chegando a haver quem fizesse apostas. Sucede que o autor eram três: «Os três-autores-três, que haviam escrito e sequenciado o livro, constavam entre os mais mal tratados, ou reduzidos pelo silêncio, de todo o catálogo da frenesi». Lidos cegamente passaram a ter qualidades que olhos esbugalhados jamais haviam descortinado. Tem graça o divertimento, por ter conseguido «ridicularizar o cientismo crítico literário». Sabe-se hoje, por via da publicação de três livros na Viúva frenesi de 2017, que os três implicados no objecto lírico não identificado eram Rui Baião, Manuel Fernando Gonçalves e Paulo da Costa Domingos.
   Outro mosqueteiro destas frenéticas andanças foi Al Berto, que assinou com Paulo da Costa Domingos e Rui Baião a importante antologia Sião (frenesi, Fevereiro de 1987). Dos autores daquilo a que podemos chamar, com precavidas reservas, “grupo frenesi” mais correcto seria “núcleo apoiante” , Al Berto foi quem teve maior exposição mediática. O facto, por si só, não garante nada, a não ser certo folclore que no caso redundou num bolinho à venda nas pastelarias de Sines e num filme absolutamente medíocre. O contributo de Paulo da Costa Domingos vai no sentido de recuperar uma dignidade que outros parecem apostados em ajavardar. O extenso título é sintomático: «Al Berto: A Busca. A Solidão. A Morte. E Sempre Este Nosso Idioma [cartas inéditas e outras raridades, transcrição quase diplomática anotada por Paulo da Costa Domingos, seguidas de um poema deste último] (Viúva frenesi, Janeiro de 2019).
   Destas cartas, datadas do início da década de 1980, restauramos a ideia de um escritor com os seus tormentos e dúvidas: «será mesmo importante que as pessoas leiam o que escrevo?» (p. 3) A dedicação à escrita, para ser levada mais a sério do que por aí se propagandeia, faz-se acompanhar de sentimentos de exílio, solidão, depressão, num tom que nada tem que ver com o das cornucópias caleidoscópicas que ofuscam com brilhos artificiais a nebulosa por detrás dos acontecimentos: «no alentejo é frequente as pessoas livrarem-se da vida, aliviarem-se talvez, por enforcamento. é talvez por isso que os meus sonhos são, por vezes, atravessados por cordas. a herança destas planícies. a agonia dos dias imensos, sem ninguém…» (p. 6) Sobre este ninguém pesa a palavra solidão, tantas vezes repetida nestas missivas curtas mas altamente reveladoras de um estado de alma que não se coaduna com a putativa alegria de uma boémia que, bem entendida, é já em si mesma fuga e resposta à solidão interior e ao exílio exterior.
   O excelente ensaio de Óscar Faria que encerra Ostras, Doc. Interno é, aliás, um forte contributo para a contextualização do “divertimento” nestas matérias. Ao invés da mera provocação inconsequente e esvaziada de conteúdo, temos nestas duas publicações exemplos de um esforço ao serviço da desmitificação. Nas Cartas, desmitificação da persona. A certa altura o próprio Al Berto refere-se a si mesmo como «o novo-falso-mito», acrescentando: «eles não sabem que uma das atitudes possíveis é mantermo-nos de rosto virado, mostrar-lhes um pouco da máscara» (p. 8). Nas Ostras, a desmitificação opera-se numa primeira instância ao nível da autoria e, por consequência, resulta numa desmitificação da “imprensa cultural”: «Ao propor um livro escrito por autor anónimo, a frenesi operou um gesto dirigido sobretudo para dentro do meio literário, mais especificamente o das recensões de livros de poesia, pois sem autor, sem uma biografia, um contexto, o que resta para dizer?» (p. 26)
   O desafio é exactamente este, percorrer caminho na direcção do que resta. E o que resta para lá do Autor, essa marca que pode ser apagada pelo anonimato, pela heteronímia ou pela pessoa colectiva, é a palavra na sua máxima expressão, expurgada de rosto, palavra cortante, em estado bruto, palavra cruel, selvagem, pura palavra. Seria de supor que o debate crítico se desse apenas com esse texto, não carecendo de fotografia ilustrativa. Seria de supor do crítico uma coragem no confronto com o desconhecido que ele de todo não tem. Como em terra de cegos quem tem olho é rei, afasta-se de todo a leitura cega. Há reinados de um só olho que poucos estão dispostos a perder, sendo múltiplas e diversas as tácticas de conservação e os escudos protectores. Que façam bom proveito.

2 comentários: