sábado, 19 de janeiro de 2019

"POESIA REUNIDA", DE MANUEL RESENDE


De um poeta que raramente publica diz-se bissexto, presumo que pela raridade dos anos com 366 dias. Sucede que essa raridade repete-se de quatro em quatro anos, o que torna a expressão algo desajustada quando falamos de um poeta que entre o livro de estreia e o segundo deixou que passassem 15 anos. Manuel Resende (n. 1948) estreou-se com Natureza Morta Com Desodorizante (1983), no mesmo ano em que Jorge Sousa Braga (n. 1957) publicava De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu. O segundo livro surgiu apenas em 1998, com o título Em Qualquer Lugar. Tiveram de passar mais 6 anos até que Manuel Resende publicasse O Mundo Clamoroso, Ainda (2004). Estes três livros são o corpo essencial da Poesia Reunida (Cotovia, Abril de 2018), ao qual se juntaram três inéditos e um conjunto de 11 poemas atribuídos ao heterónimo Mika Ahtisaari. A reserva em termos editoriais contradiz a expansividade dos versos, os quais assumem formas diversas e manifestam assimilações quer da tradição, quer da contemporaneidade, que tornam os poemas vigorosos é ricos. Contemporâneo de Manuel António Pina (n. 1943 - m. 2012), de quem foi amigo, tradutor entre os melhores, Manuel Resende é um dos nossos mais relevantes poetas vivos. 
   Osvaldo M. Silvestre oferece a esta Poesia Reunida algumas pistas de leitura no posfácio intitulado A R(e)alidade e as Cerejas, nomeadamente ao referir-se a um vínculo à História que nada tem que ver com a paisagística datada daquilo a que por norma se dá o nome de poesia política. Herdeiro do Maio de 1968, Manuel Resende denota nos seus poemas tanto a influência do surrealismo como do situacionismo. Mas do primeiro parece preferir uma vertente mais empenhada na desconstrução da realidade do que na expressão de conteúdos inconscientes, enquanto do segundo absorve o ímpeto crítico da sociedade civil e a pulsão contestatária inerente a essa atitude crítica. Isto torna-se perceptível em poemas onde o tempo histórico surge claramente nomeado em factos e situações facilmente identificáveis: Entre Abril e Junho 74 (poema longo em 4 partes), Lament of J. P. M. in 1975 (escrito em língua inglesa), Sarajevo Srebrenica (Poema em três capítulos), Bombardeamentos de Dubrovnik, Tsintsum e Auschwitz, Marek Edelman, Herói do Gueto de Varsóvia, etc..
   O que todos estes poemas, ora em verso, ora, a espaços, em prosa, uns mais longos, outros mais curtos, o que todos eles transparecem é um certo desencanto histórico, ou seja, neles nada se glorifica, a humanidade surge encalhada num mar de lágrimas com a morte no horizonte. Ainda que a ironia, cultivada com mestria, disfarce a desesperança, é esta a emoção que mais vezes ecoa por dentro de uma inquietude que não raras vezes também desloca o leitor da paisagem externa para os campos da intimidade:

A PARTEIRA DA HISTÓRIA

Já nem sequer se consegue amar nem odiar a parteira da História e, vendo bem, que nos resta senão o humilde gosto de saber o trabalho bem feito quando o há,
De escovar a mão por fim preguiçosa na cadeira acabada?
Quanto a corpo, temos conversado, menino mimado sempre a pedir atenção e médicos e cama de dormir.
De repente, caímos em nós, dentro de nós, e não há nada lá dentro
A que nos agarrarmos.

   Outra pista de leitura pode ser colhida naquilo a que Silvestre chama uma ausência de «conflito entre ser clássico e ser moderno», o que terá que ver com um culto da experimentação denunciado em poemas de temática diversa. Mas esta inclinação não deixa de sugerir igualmente uma noção do Tempo já não circunscrito aos factos, antes consciência interna da efemeridade que atravessa as coisas do mundo. Sendo que, neste caso, a função do poema pode ser entendida como tentativa de superação dessa transitoriedade. Daí a recuperação de formas ditas clássicas, lado a lado com exercícios lúdicos aos níveis fonético e formal. Todo o poema Crítica da Razão Pragmática seria um bom exemplo desta conjugação do clássico com o moderno, fazendo-se o primeiro representar logo no primeiro verso «Rumai meus ledos dedos ó romeiros», enquanto a modernidade se impõe ao longo de 4 partes até ao remate no melhor estilo de um Álvaro de Campos: «Esmaga-me a boca para que possa enfim dar um, grito / Impuro insólito complicado:» (p. 29). Golo.
   Não obstante, julgo que os melhores momentos desta Poesia Reunida surgem quando o sujeito poético se desamarra da História e do Tempo. Esse gesto libertador oferece-nos o fogo de uma inquietação interior que eleva a emoção acima do pensamento, revolvendo os (pre)conceitos com que adornamos a vida e justificamos a morte. Nesses poemas é o amor e a liberdade quem nos fala, não é já a revolta social falhada nem o grito desesperado, é o desassossego individual de Um Dia de Vida (Crítica da razão heróica), desafiante poema em prosa do primeiro livro, é a evocação de certo O’Neill num quotidiano denunciador dos limites da existência:

VOLTAR PARA CASA

Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
E seguir o rasto das árvores no chão,
Pelo caminho conhecido, com o coração mirrado nas mãos
E as mãos nos bolsos como um apontamento antigo?
Não haverá outra história para viver, um jornal para cada um,
E súbita a esperança a queimar os lábios, a palpitar na boca,
Pronta a saltar e a arder todo o corpo?
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa,
Cabisbaixa?

   Nestes poemas a História do mundo sintetiza-se na história de um sujeito, não estão separados, integram-se um no outro, o sujeito imerso no mundo, o mundo absorvido pelo sujeito. E ambos se espelham num reflexo débil que ecoa do fundo do Tempo a pergunta derradeira: «Com que então, era isto a vida?» (p. 123) É isto a vida. Às vezes parece que é pouco, outras vezes parece que é demais. Que entre o sopro inicial e o suspiro final possa o riso contornar-lhe as figuras baças:

CONFISSÃO

Abri a vida à nimzo-índia.
Digamos que sou um sujeito oblíquo e chato de viver
E só à força de distracção
Ainda por aqui ando.
Se me abrirem a cabeça
Só encontrarão uma massa cinzenta e retorcida,
Isso garanto.
Sei muito bem,
Mergulhei muitas vezes em mim
E, confesso, custa a respirar lá dentro.
Agora, não dou é pormenores.

Digamos que me saiu o jackpot
Nas slot machines
E que voltei a gastar tudo no mesmo jogo.
Fiquei cheio de bolhas na mão.

Mas também, mundo, descansa,
Em breve te entregarei
A última prestação,
Pouco mais serei do que uma simples tosse
Que um dia passou por alguns corredores,
Não muitos.

Por isso, Santo Expedito das Causas Urgentes,
Da próxima vez, cara, me dá
Uma voz de rouxinol
Para cantar nos jardins,
Ou uma voz estentórea
Para ir para a baixa incomodar a gente que passa.
Dá-me uma força de catástrofe natural,
Género tufão, vendaval, inundação,
Não interessa a espécie,
Dá-me coragem
E absolve-me preventivamente de todos os pecados:
Eu seja o próprio amor
E a própria liberdade em marcha,
Que só usa o corpo como simples
Plataforma de apoio, parceiro leal
Veículo de fundo e
Substância essencial.

1 comentário:

alexandra g. disse...

Pessoa de uma inteligência espantosa, uma acuidade rara, um sentido de humor que, de tão espontâneo, nos liberta das coisas do quotidiano, as mais fastidiosas, religando-nos a elas por outra via, um outro olhar, francamente mais estimulante.

Foi também homem-sanduíche, nos primeiros tempos de Bélgica, o que lhe terá assentado como uma luva :)

Ao Resende, Manuel, sempre, os meus votos de alegria :)