quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

UM POEMA DE JOÃO PAULO ESTEVES DA SILVA

À BEIRA DO LAGO DE TIBERÍADES

Aquele rapaz judeu, daqui, da Galileia,
que os romanos mataram para exemplo,
que curava pessoas, contava histórias,
aos que já não precisavam de as ouvir
por já acreditarem nele, enquanto
os descrentes, mais cegos e mais surdos
ficavam perante a luz e o som; esse rapaz,
nunca veria a beleza possível da justiça?
Seria todo ele, e só, amor divino?
Não vou discutir se era deus ou não.
A ideia de ter vindo para nos salvar,
sofrendo por todos, por amor de todos,
é uma ideia bonita, forma pregnante, fértil,
fundadora das nossas vidas ocidentais,
que já leva dois mil anos de carreira;
e quase que me levava pelo mito fora,
não fosse o pormenor, tantas vezes despercebido,
de o corpo escolhido para sofrer por todos
ser, como quem não quer a coisa, um corpo judeu.
Nisto, o meu coração tropeça, e desconfia.
Se a salvação depende do sofrimento dum judeu,
então não a quero, deus me livre de salvações destas.
E também não quero um mundo de amor puro
em que o Hitler e o imperador Constantino
que matou o filho, cozendo-o como uma lagosta,
tenham o mesmo lugar no seio da misericórdia
do que a Dona Ana, que enlouqueceu de dor e desamor,
ou aquela puta de olhos tão duros e tristes,
ou eu com sonhos de matar cavalos feridos.
Aliás, contam os sábios de Israel, que deus tentou
fazer o mundo só com amor, e a coisa não pegou;
tentou fazer o mundo só de justiça, e foi ainda pior.
Terá, então, feito este mundo que há, de mistura explosiva.
E é o que temos, e que talvez possa melhorar.
A dever escolher entre os dois mitos, prefiro o último,
mas compreendo que este mar de luz sobrenatural
deixe imensas saudades de um amor puro.


João Paulo Esteves da Silva, in Dois Bois e Uma Arma na Mão, Douda Correria, Abril de 2018, s/p.

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