Os detractores
falarão de licenciosidade, censurando a gargalhada erótica com que brindou a
literatura. Pierre Louÿs (n. 1870 – m. 1925) foi um daqueles franceses como
sabeis terem existido muitos. À semelhança de Jesus Cristo, preferia a
companhia das putas e dos marginais. A sífilis cegou-o e abriu-lhe as portas da
morte. Mas tinha bom sangue, com barões e duquesas na árvore genealógica. Nos
maus vícios esbanjou fortuna e saúde, terminando só e cheio de dívidas.
Impressionante, porém, o legado literário que deixou. Se tiverdes curiosidade,
desbravai os campos do preconceito e ide ao encontro sem receios. Os livros,
até ver, não transmitem doenças, tenhamos nós espírito para com
eles aprendermos a questionar tudo quanto existe.
Deste Manual de
Civilidade Para Meninas destinado às escolas podeis encontrar duas versões cá
em casa. Uma, no formato de folheto, publicada na colecção contramargem da
& etc em Outubro de 1980. Que eu tenha dado por isso, não faz referência ao
tradutor. Custava 70$00 à data de publicação. A outra, num formato mais requintado,
com ilustrações de Pedro Proença e tradução de Júlio Henriques, foi publicada
pela Fenda em 1988. Tenho a 3.ª edição, já de 2005. Custou-me 11,70 € numa
FNAC.
Publicado postumamente em 1926, dirigia-se às
meninas com o propósito claro de abater o puritanismo e libertar a mulher de opressões
sociais, morais, religiosas, em matéria de sexo. O tom jocoso e grotesco, mais
do que apelar a um hedonismo à maneira dos gregos, desafia a imaginação. Vós,
que sois raparigas e saudáveis, podeis melhor do que eu averiguar quanto de
fantasioso ou naturalista há nestas máximas e nestes conselhos. A mim cabe-me
preparar-vos para a complexidade do corpo e dos seus desejos, mostrando-vos os
caminhos múltiplos e as diversas possibilidades de exaltação.
Júlio Henriques apresenta-o como «hilariante caricatura dos livros de moral para crianças». Dos deveres para
com distintas entidades (pai, mãe, irmão, irmã, Deus…) a advertências protocolares,
percorrendo as práticas mais diversas nos contextos mais díspares (copa, casa,
quarto, mesa, recreio, aulas, igreja…), Pierre Louÿs não se imiscui de sugerir sugestionando. A gastronomia presta-se a todo o tipo de alusões,
estejamos a falar de espargos, bananas ou morangos. O mais é gramática:
Entre os
principais verbos da segunda conjugação não deves incluir foder (eu fodo, eu
fodia, eu foderei, que eu fodesse, fodendo, fodido). Conjugá-lo é interessante
mas, revelando que o sabes, arriscas-te mais facilmente a uma reprimenda do que
se o ignorares.
Ou boa tradução:
Nos exercícios de
inglês do primeiro ano, às vezes aparecem frases simplórias: «Eu tenho uma
linda ratinha. Nós temos grandes grelos. Ele ou ela gosta de linguado. A minha
irmã tem uns bonitos marmelos. O meu irmão cuida dos tomates. A minha mãe está
a esfolar um cabrito. O meu padrinho gosta muito do broche da minha tia. Quando
o meu pai monta, rebenta sempre o freio. A minha prima está a comer um
jesuíta.» Se tal acontecer, não deves retroverter à letra: «I have a pretty
little cunt. We have big
clitos. He or she likes to be tongued, etc.»
Dito isto, sabei
que por detrás da graça se esconde a mais desafiante das lutas: oferecer ao
corpo os prazeres que ele merece, libertando-o das amarras de uma mente
moralista e moralizante. Reparai, minhas filhas, quão difícil é a tarefa que
vos espera, mais ainda neste tempo em que tudo anda para trás.
Os pequenos ditadores da moral e dos bons costumes sussurram-nos ao ouvido
permanentemente, pretendendo-nos submissos e infelizes na paz do Senhor. Ao
contrário do grande Ideal antigo, que fazia do corpo uma prisão da alma, podeis
nesta obra constatar que prisão maior e mais indelével é a alma para o corpo
quando impõe sem questionar, quando força e obriga sem deixar espaço para a
imaginação, quando censura sem permitir experimentar.
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