Só quem ande
distraído poderá surpreender-se com a incursão de Inês Lourenço (n. 1942) no
terreno da prosa. Encontramos três textos de sua autoria na Primeira Antologia
de Micro-Ficção Portuguesa (Exodus, Fevereiro de 2008), dois dos quais reaparecem,
com pequenas alterações, nestas Últimas Regras (Companhia das Ilhas, Abril de
2019). Um deles chegou a oferecer título à colectânea Ephemeras (Companhia das
Ilhas, 2012), na qual alguns dos textos agora reeditados tinham sido
anteriormente publicados. Tratando-se de uma relevante poeta portuguesa, Inês
Lourenço não larga mão da poesia nos seus textos em prosa. Alguns aproximam-se
daquele género que Charles Baudelaire classificou de “petits poemes en prose”, sendo
isso evidente, por exemplo, nos textos intitulados A seda da sombra e Lúbricos.
A diferença destes para outros reside no desvio da narratividade para uma acção
em que a interacção entre personagens dilui-se na sublimação de gestos—
«deslizar os dedos na pelagem morna de um bicho amável» (p. 25) —
ou na caracterização de determinados objectos — «o erotismo telúrico dos
frutos» (p. 26) —, abrindo possibilidades de interpretação com uma
linguagem mais exposta ao registo metafórico.
Há também textos
atravessados por uma coluna vertebral aforística, reflexões curtas e
acutilantes sobre temas diversos: da relevância das ditas ciências humanas (num
mundo cativo das ciências ditas exactas) à morte, passando pelo amor, pela
doença, a velhice, o suicídio, o erotismo. Mas o mais interessante talvez seja
sublinhar como nestas histórias se retrata a passagem do tempo, recorrendo a
memórias domésticas ou ironizando costumes sociais, lembrando os jogos da
infância, desmontando com humor, ironia e iconoclastia quanto baste, os hábitos
de uma sociedade arreigada a tradições caídas em desuso. Por vezes, o cinema
estimula o jogo de comparações, oferece o cenário, noutras ocasiões é a música
ou a literatura quem sustenta o palco onde se desconstroem mitologias. Estes
diálogos com as outras artes não esgotam, porém, o verdadeiro interesse destas
narrativas, já que deles logo saltamos para vidas e situações concretas.
Temos a
bibliófila Serafina, o bombeiro Orfeu, misturados com a rapariga ardina, a
adepta do F.C.P. ou alguém que inspira uma curiosíssima Biografia Apócrifa:
«Disse que estava farta de fazer de senhora bem comportada e sentia o desejo
obsessivo de que o seu interior verdadeiro tivesse uma descrição, não numa
dessas coisas que saem como brochuras grátis nos semanários e a que chamam
biografias edificantes, mas que parece não passavam de histórias muito
exemplares e falsas como o pechisbeque» (pp. 23-24). Nota-se uma especial
predilecção por personagens femininas, o que permite a Inês Lourenço questionar
o lugar da mulher na sociedade e nos diferentes contextos sociais. De resto, o
próprio título do livro remete para uma condição especificamente feminina. No
conto com o título Primeiras Regras glosa-se a primeira menstruação, enquanto
nas Últimas Regras o tema é a última menstruação. Entre um e outro, o próprio
corpo —
«Corpo humano, corpo divino» (p. 53) — é quadro onde a passagem do tempo se
evidencia a partir de uma experiência transformante.
É nesta relação
com o corpo que melhor se coloca o problema da passagem do tempo: «Por que
seria seu aquele corpo em que os anos já se amontoavam?» (p. 30). A questão
surge no texto intitulado Simetrias. Num outro, com o título Auge, o problema aparece
desta forma: «Lembrava-se do corpo da juventude só necessitando de água, sol e
ar» (p. 53). Mas também temos as cartas de amor substituídas pelas sms, temos
os álbuns de fotografias substituídos por arquivos digitais. Uma leitura
precipitada tenderá a falar de nostalgia, mas talvez seja mais correcto apontar
uma crítica do senso comum: «O senso comum glorifica a juventude, a voracidade
relampejante, o inteiro ardor. Ignoram que é próximo do fim da caminhada, num
lugar até aí inexpugnável, que estão as respostas aos enigmas» (p. 54). O enigma
da existência, plasmado na consumação do tempo, é o que melhor convém às
Últimas Regras. Estas histórias abrem-nos caminho para o pensamento,
alertam-nos para o que se oculta por detrás da voragem insensível de um mundo
acelerado por obrigações, deveres, ambições. A brevidade dos retratos apenas acentua
a urgência do diagnóstico, tornando claro, por vezes com requintado humor e uma
ironia astuta, outras vezes com impetuoso sentido crítico, que a vida é sempre
mais o quanto se vai perdendo do que aquilo que se conquista.
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