sexta-feira, 19 de abril de 2019

A MULHER QUE CORREU ATRÁS DO VENTO


   A participação num clube de leitura levou-me a entrar na obra de João Tordo (n. 1975) através deste A mulher que correu atrás do vento (Companhia das Letras, Março de 2019), romance com uma estrutura ambiciosa que o autor desenvolve com segurança, apesar de incoerências menores, mas que nos deixa no final com sentimentos ambivalentes quanto ao estilo, linguagem, desenvolvimento de algumas personagens. Antes de mais, convém ter presente a ideia de um romance sobre mulheres. As personagens que importam são todas femininas, os homens surgem como adereços nos dramas, nas angústias, nas experiências de vida das mulheres aqui retratadas. Mas é um romance que se pretende sobre mulheres escrito por um homem, o que levanta desde logo problemas quanto à real percepção de uma sensibilidade feminina. A pergunta é: tivessem as personagens femininas nomes de homens, qual seria a diferença? Julgo que nenhuma. Nada há nestas personagens que realmente as defina enquanto mulheres, podendo demarcar-se nos seus comportamentos, gestos, atitudes, pensamentos. São mulheres, podiam ser homens. São personagens.
   O logro agrava-se com a tendência algo frustrante nos escritores da minha geração que vou lendo para personagens sempre muito cultas, interessadas por literatura, música erudita, pintura. O problema talvez seja meu, saturado que ando de livros sobre escritores. Assim, temos a estudante de literatura que anda a traduzir Joyce. Ainda por cima Joyce, o mais exigente dos autores. E temos a professora de piano que no séc. XIX deixa de herança uma composição magnífica. Ora tomem lá com o Mozart e o Satie e o Gesualdo e o Wagner e o Beethoven e o Dvořák e o Grieg e o Tchaikovsky e o Bruckner e o Mendelssohn e o Bach e tantos mais… E quando julgávamos ter algo diferente, uma sem-abrigo, descobrimos que afinal a rapariga estudou muitas coisas, desde os clássicos do realismo russo a Belas-Artes, tem um incomparável talento para o desenho, passou pela dança e pelo budismo e leu O Peregrino, de John Bunyan, e conhece O Retrato de Alice Guérin, de Helleu. Uma canseira. Não bastando, a miúda é filha de uma famosíssima actriz, como ela ninguém fez Tchekhov, Beckett, Miller…
   Como é óbvio, todas estas personagens vão de algum modo ligar-se em determinada altura. Só no último capítulo a trama fica totalmente desvendada, ou nem por isso. O mérito está no ritmo narrativo, na capacidade de prender o leitor até ao fim, na técnica, até na forma como ludibria, joga, simula, subverte, está na história dentro da história, no romance dentro do romance, está na capacidade de ligar as personagens através de uma marca comum que as equilibra na complexa teia montada: «A palavra surgiu-lhe com força inusitada. Conseguia vê-la na escuridão da mente: abandono» (p. 412). O abandono é o que liga estas mulheres, emergindo das suas relações com a força dos grandes temas. Uma abandonada pelo amante, outra abandonada pela mãe, outras que abandonam quem amam ou por quem amam são abandonadas. Do abandono geram-se mazelas insanáveis, perturbadoras depressões. Obviamente teremos suicídios, e até uma espécie de crime edipiano, mas tudo num jogo de simulações que faz deste um romance sobre a própria arte do romance, sobre a natureza da ficção, sobre o artista como um mentiroso, um enganador, um fingidor.
   João Tordo leva 456 páginas a dizer-nos o que Fernando Pessoa resumiu em três quadras no poema Autopsicografia. Não tem mal, é essa a arte do narrador. A do poeta é sintetizar. O pior é o estilo, a obsessão com os cheiros. Por exemplo: «Não cheirava a água-de-colónia; cheirava, nesse dia, a uma mistura de suor e de sono» (p. 36), «Cheirava a quê? A cânfora, a lareira… Cheirava a lágrimas e a sal quando a abraçava» (p. 48), «Cheirava a limão e a outro aroma impossível de identificar. O sexo dela sabia ao mesmo que a boca, um travo almiscarado» (p. 170). Enfim, o que não falta são cheiros e odores e aromas e travos. E um escritor impotente a falar com o próprio pénis: «Cabrão, pensa. Podias funcionar de vez em quando» (p. 169). Talvez tudo isto pudesse ser mais burilado, trabalhado, cortado. Há cenas que estão claramente a mais, não servem para nada, capítulos esticados à exaustão que nada perderiam sendo reduzidos a metade. Mas há também a história de Lisbeth, a tal professora de piano, a história dentro da história, contada como uma peça de teatro, adaptação de um famoso romance do tal escritor impotente, e bem ilustrada no segundo capítulo, sobretudo na cena do funeral em que Lisbeth solta um grito contra a hipocrisia social envolvente. Lisbeth, por si só, garantiria o livro. Lisbeth e o aluno autista, um prodígio.

3 comentários:

manuel a. domingos disse...

Quando se procura a escrita criativa, em vez da escrita, dá nisto.

hmbf disse...

Técnica.

Luís disse...

Nem faltou o aluno autista que é um prodígio?

Há outros clichés da voga actual com que me deva precaver?