São inúmeras e bastante desiguais as representações da
caridade ao longo dos tempos. Encontramos uma das mais controversas em Sete
Obras de Misericórdia (1607), de Caravaggio. Diz-se que era violento e
grosseiro, que escolhia os modelos entre gente comum. Não perderemos nada em
mantê-lo por perto. O quadro em causa envia-nos para o mito da caritas romana,
com a figura feminina de Pero a amamentar Cimon, seu pai, enquanto ele aguarda pela
morte na clausura. Incesto e altruísmo misturam-se nesta história, a qual se
conta às criancinhas enquanto exemplo de piedade. José Emílio-Nelson (n. 1948),
que há muito mantém uma relação de proximidade com a pintura na sua poesia, não
recupera exactamente esta história em Caridade Romana (Abysmo, Novembro de
2018), mas de algum modo a reconfigura no que ela possa conter de extremamente
lascivo: uma filha a amamentar o pai.
Este pequeno livro é todo ele excessivo e voluntariosamente
blasfemo, quer na forma de abordagem do ágape místico, quer na associação que
dele faz ao sadismo e ao masoquismo. A evocação de Marguerite Porete (1250-1310)
no prólogo, mística francesa condenada à fogueira, autora de O Espelho das
Almas Simples, considerada pelo Tribunal da Inquisição como “herética recidiva,
relapsa e impenitente”, dá conta do recado: esta é mais uma obra do diabo.
Escrito como se de uma peça teatral se tratasse, desafiando todas as normas da
construção dramática, intercalando múltiplas vozes com enigmáticas e labirínticas
didascálicas, Caridade Romana coloca em cena modelos requisitados nas obras do
Marquês de Sade, nomeadamente na Histoire de Juliette, ou Les prospérités du
vice (1801), retomando a hipótese do vício como caminho para a santidade.
Lembremos que a Justine, irmã de Juliette, mais não coube
do que uma desesperada existência de abusos por tão recta e virtuosa procurar
ser. A Besta e o Velhorro El Señor que se confrontam ao longo da parada marcam
o ritmo de uma interpelação repleta de cenas pornográficas, onde não faltam
actos necrófilos e coprofágicos, festim de bestialidade espiado pelos flashes
de uma Leica fetichista. «Julie, estremecida, celebra Sade», celebra-o e
actualiza-o à luz das expiações e actos de contrição levados agora a cabo nas
redes sociais. Alguns separadores isso mesmo indicam, sugerindo a transcrição
de diálogos facebookianos: «Continue a postar retratos seus, serão sacrificados
ao meu narcisismo. (…) Vou actualizar a foto de perfil. (…) A mim ninguém pede
adesão, só às vezes algum conhecido».
Blasfema, heterodoxa, iconoclasta, depravada, heresiarca,
esta é uma obra que se lê nas entrelinhas de um fascínio pela maldade e pelo
vício, gozo de tudo quanto afronta a moral e os bons costumes, uma obra que revira
os mitos para desmistificar, desnudando as faces luxuriante e concupiscente do
corpo que deseja. O transe é paixão, o êxtase é orgasmo, a oração é
masturbação, a genitália é o terço que nos redimirá do pecado: «Julie é
estuprada por Mme Delbène, sempre com o seu godemiché, e é urdida
cerimoniosamente com doçura quando cede a desvendar insignes falsidades. À Emma
evocam a noção de pertença e tentam sancionar o comportamento avesso aos bons
costumes. Claude, frente ao espelho, une três dedos e, em círculos,
perdidamente, os afunda em si, e fecha as pernas e logo as escancara, e e…
Olympe diz-se ‘ensopada’ e faz carícias a El Señor lambendo-Lhe mais abaixo do ‘escopro’.
Laurette é enrabada por Delcour, Genande, Noirceuil, alternadamente. Antonino
cede o ‘gel íntimo’. Veio-se» (p. 34).
Desta orgia de personagens e imagens retiramos também uma fé, a fé de
um corpo que se liberta da doçura conventual. O leite que alimenta aquele que
em clausura aguarda pela morte pode assumir diversas proveniências. Aqui, a
salvação ejacula-se. No prazer da carne está a via de uma santidade que já nada
pede ao sacrifício, que não cobra a existência, uma santidade amoral, por assim
dizer, na medida em que subverte os padrões contemplativos e ideais de um
erotismo sem corpo, insípido, inodoro, anódino, espiritual. Neste sentido,
podemos dizer que à Caridade Romana de José Emílio-Nelson corresponde uma
glorificação da carne, matéria de que é feito o corpo que deseja, a carne já
não apenas enquanto maná da morte anunciada, prisão do espírito, mas antes como
lugar de libertação do desejo e desprendimento de uma moral castradora.
3 comentários:
Excelente leitura: inteligente e informada. Abraço
Mais um livro desafiante, meu caro. Parabéns.
bastante iconoclasta
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