quarta-feira, 24 de abril de 2019

CRISTOVAM PAVIA




   Alguém no fundo da sala me questiona acerca de Deus, respondo sem pedras na mão que é para mim assunto encerrado. Ainda mal refeito da morte, já Deus dançava com os meus maiores inimigos. Tenho pelos zeladores o asco que me causam tortura, evangelização, vias-sacras. Veio ele ao mundo para isto? Fez-se homem para isto? Antes os homens de carne e osso, com seus pecados mortais espalhados pelo corpo como vírus. Antes uma ilha de pássaros em chamas, antes um enxame de ilhas esvoaçantes, antes o delírio das cabeças que cantam com agrura.  
   Alguém no fundo da sala me questiona, respondo de braços abertos: vem, senta-te a meu lado, tenho carvão com que poderemos traçar paralelas em folhas infinitas. Juntos suportaremos melhor o frio. Deus vive nas coisas perecíveis, não tem frio. Mas nós temos, por isso enchemos as paredes de figuras, por isso adornamos as casas com figuras, por isso alimentamos os filhos e as criaturas. Como ele caminharemos sobre as águas equilibrando o corpo na volta das ondas, de mão dada, juntos, próximos um do outro bastaremos à aventura de estar vivo.
   Alguém no fundo da sala, respondo: o canto estende-se no ar tal o corpo na relva, o canto espreguiça-se e suspira, o canto é um lençol que se desfaz na atmosfera, escuta o canto em cada partícula de silêncio, escuta-o explosivo a enunciar quanto de nós há na voz, quanto de vós há em nós, o canto pode ser lamento, anunciação, exaltação, o canto saúda o sol e todas as coisas da Terra, vindas da Terra para acima da Terra perdurarem como sombras de pássaros, o canto é esta comunhão sentada ao lado do vazio, convido-te a escutar o canto oferecido sem retorno, apenas uma nota vibrando no interior do sangue, escuta-o, desenha-o, observa-o, o canto tem a mais nítida cor que um som pode ter.
   Alguém no fundo: 

                               Alguém no fundo de nós 
                               por nós responde em silêncio, 
                               vozes que cantam
                               por dentro do sangue, 
                               rasgada a carne, é Deus 
                               quem se espalha pela Terra. 
                               E eu respondo “questão resolvida” 
                               imitando pedra que raspada 
                               contra pedra ateia a chama.


Nota: pseudónimo de Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, Cristovam Pavia foi assaltado desde cedo por vários tormentos psíquicos. Faleceu no dia 13 de Outubro de 1968 sob o rodado de um comboio.

1 comentário:

Diogo Almeida disse...

«Veio ele ao mundo para isto? Fez-se homem para isto?»

sempre esta visão pessimista de tudo. nunca a redenção, lugares melhores. até parece que somos uns miseráveis do caralho.