Alguém no fundo
da sala me questiona acerca de Deus, respondo sem pedras na mão que é para mim
assunto encerrado. Ainda mal refeito da morte, já Deus dançava com os meus maiores inimigos. Tenho pelos zeladores o asco que me causam
tortura, evangelização, vias-sacras. Veio ele ao mundo para isto? Fez-se homem
para isto? Antes os homens de carne e osso, com seus pecados mortais espalhados
pelo corpo como vírus. Antes uma ilha de pássaros em chamas, antes um enxame de
ilhas esvoaçantes, antes o delírio das cabeças que cantam com agrura.
Alguém no fundo
da sala me questiona, respondo de braços abertos: vem, senta-te a meu lado,
tenho carvão com que poderemos traçar paralelas em folhas infinitas. Juntos
suportaremos melhor o frio. Deus vive nas coisas perecíveis, não tem frio. Mas nós
temos, por isso enchemos as paredes de figuras, por isso adornamos as casas com
figuras, por isso alimentamos os filhos e as criaturas. Como ele caminharemos
sobre as águas equilibrando o corpo na volta das ondas, de mão dada, juntos,
próximos um do outro bastaremos à aventura de estar vivo.
Alguém no fundo
da sala, respondo: o canto estende-se no ar tal o corpo na relva, o canto
espreguiça-se e suspira, o canto é um lençol que se desfaz na atmosfera, escuta
o canto em cada partícula de silêncio, escuta-o explosivo a enunciar quanto
de nós há na voz, quanto de vós há em nós, o canto pode ser lamento,
anunciação, exaltação, o canto saúda o sol e todas as coisas da Terra, vindas
da Terra para acima da Terra perdurarem como sombras de pássaros, o canto é
esta comunhão sentada ao lado do vazio, convido-te a escutar o canto oferecido
sem retorno, apenas uma nota vibrando no interior do sangue, escuta-o,
desenha-o, observa-o, o canto tem a mais nítida cor que um som pode ter.
Alguém no fundo:
Alguém no fundo de nós
por nós responde em silêncio,
vozes que cantam
por
dentro do sangue,
rasgada a carne, é Deus
quem se espalha pela Terra.
E eu
respondo “questão resolvida”
imitando pedra que raspada
contra pedra ateia a chama.
Nota: pseudónimo de Francisco António Lahmeyer Flores
Bugalho, Cristovam Pavia foi assaltado desde cedo por vários tormentos
psíquicos. Faleceu no dia 13 de Outubro de 1968 sob o rodado de um comboio.
1 comentário:
«Veio ele ao mundo para isto? Fez-se homem para isto?»
sempre esta visão pessimista de tudo. nunca a redenção, lugares melhores. até parece que somos uns miseráveis do caralho.
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