Evitemos classificar idades na história dos homens. Em
tendo havido uma idade das trevas, quando terá sido a idade da luz? Dessas
épocas que dizem negras chegam-nos ecos luminosos, tal como nas eras mais
pacíficas descobrimos buracos negros de maldade. Pode o tempo difundir-se linearmente
ou a esmo, o que nos parecerá improvável é que nessa difusão predominem o bem
ou o mal, a virtude ou o vício, como gigantes inexpugnáveis. Em qualquer lugar,
em qualquer época ou era, sempre a história dos homens foi uma batalha interminável
entre bem e mal. Empédocles, o pré-socrático, terá sido quem primeiro
reconheceu no mundo a dinâmica das coisas universais. Assim era no seu tempo,
assim continua a ser no nosso.
Entre hoje e ontem podemos vasculhar nos escombros, nas
ruínas, nos destroços da batalha, que encontraremos sempre entre as vítimas quem
tenha ido para a vanguarda em benefício próprio ou pelo bem alheio. Só os
últimos, creiam, devem merecer o epíteto de grandes homens. Giovanni Pico della
Mirandola (1463-1494) foi um deles, apesar da morte prematura quase o ter
condenado ao esquecimento. Inimigos não lhe faltaram, desses com quem vale a
pena disputar o pensamento e dos outros, daqueles para os quais a contenda
rapidamente se afunda no pântano da calúnia e do insulto tosco. Quanto a estes,
não lhes guarda a história o nome. Àqueles o tempo perdoa as falhas.
Com apenas 31 anos de vida, Giovanni Pico desafiou as
regras do seu tempo propondo-se debater tudo quanto pudesse ser objecto de
discussão. Os opositores rapidamente o acusaram de ímpio, extravagante,
orgulhoso, herético. Respondeu-lhes com a Oratio de Hominis Dignitate (1480), discurso
que coloca a natureza ambivalente do homem tanto acima das bestas como dos
anjos. A nossa vantagem sobre as outras criaturas de Deus é sermos livres de
optar, degenerando até à brutalidade ou regenerando o espírito a caminho da
perfeição. Portanto, minhas filhas, o que ides encontrar neste Discurso Sobre a
Dignidade do Homem (Edições 70, Novembro de 1989) é um elogio da vontade, é uma
defesa da razão, é um hino à liberdade.
Educado para ser padre, para pensar e obedecer como
padre, ele fez-se filósofo. Enquanto tal, condenou tudo quanto pretendesse pôr
em xeque a liberdade do pensamento e o desígnio da razão. A ele devemos, numa
primeira instância, a separação das águas da teologia das águas da filosofia,
num tempo em que tudo não só se confundia como se cria único e indiscutível.
Não contra Deus, ele amou o homem. Amou o homem por amor ao homem, por amor à
razão e ao pensamento, porque só ao homem cabe decidir sobre o que pretende
ser: besta ou supremi spiritus? A escolha é vossa: «a partir do momento em que
nascemos na condição de sermos o que quisermos, que o nosso dever é
preocuparmo-nos sobretudo com isto: que não se diga de nós que estando em tal
honra não nos demos conta de nos termos tornado semelhantes às bestas e aos
estúpidos jumentos de carga».
A escolha é vossa, mesmo que múltiplos sejam os caminhos
para cada uma das opções. Em optardes pelo caminho do juízo, lembrai-vos de
como apenas com razão e amor podeis limpar a alma da sujidade e dos vícios que
a conspurcam: a inveja, a mentira, o despotismo, a avareza, o racismo, o ódio à
diferença, a intolerância, o etnocentrismo, o hiperbolismo, a mania de que se é
superior aos outros, o nepotismo, a cagança… Quanto ao mais, tentai viver o
mais apaixonadamente possível cada momento das vossas vidas, não desperdiçando
um segundo que seja com a vida daqueles cuja opção foi o atalho da brutalidade,
o caminho das bestas, o desperdício deste bem precioso e efémero que é estar
vivo.
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