segunda-feira, 20 de maio de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #18



   Evitemos classificar idades na história dos homens. Em tendo havido uma idade das trevas, quando terá sido a idade da luz? Dessas épocas que dizem negras chegam-nos ecos luminosos, tal como nas eras mais pacíficas descobrimos buracos negros de maldade. Pode o tempo difundir-se linearmente ou a esmo, o que nos parecerá improvável é que nessa difusão predominem o bem ou o mal, a virtude ou o vício, como gigantes inexpugnáveis. Em qualquer lugar, em qualquer época ou era, sempre a história dos homens foi uma batalha interminável entre bem e mal. Empédocles, o  pré-socrático, terá sido quem primeiro reconheceu no mundo a dinâmica das coisas universais. Assim era no seu tempo, assim continua a ser no nosso.
   Entre hoje e ontem podemos vasculhar nos escombros, nas ruínas, nos destroços da batalha, que encontraremos sempre entre as vítimas quem tenha ido para a vanguarda em benefício próprio ou pelo bem alheio. Só os últimos, creiam, devem merecer o epíteto de grandes homens. Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) foi um deles, apesar da morte prematura quase o ter condenado ao esquecimento. Inimigos não lhe faltaram, desses com quem vale a pena disputar o pensamento e dos outros, daqueles para os quais a contenda rapidamente se afunda no pântano da calúnia e do insulto tosco. Quanto a estes, não lhes guarda a história o nome. Àqueles o tempo perdoa as falhas.
   Com apenas 31 anos de vida, Giovanni Pico desafiou as regras do seu tempo propondo-se debater tudo quanto pudesse ser objecto de discussão. Os opositores rapidamente o acusaram de ímpio, extravagante, orgulhoso, herético. Respondeu-lhes com a Oratio de Hominis Dignitate (1480), discurso que coloca a natureza ambivalente do homem tanto acima das bestas como dos anjos. A nossa vantagem sobre as outras criaturas de Deus é sermos livres de optar, degenerando até à brutalidade ou regenerando o espírito a caminho da perfeição. Portanto, minhas filhas, o que ides encontrar neste Discurso Sobre a Dignidade do Homem (Edições 70, Novembro de 1989) é um elogio da vontade, é uma defesa da razão, é um hino à liberdade.
   Educado para ser padre, para pensar e obedecer como padre, ele fez-se filósofo. Enquanto tal, condenou tudo quanto pretendesse pôr em xeque a liberdade do pensamento e o desígnio da razão. A ele devemos, numa primeira instância, a separação das águas da teologia das águas da filosofia, num tempo em que tudo não só se confundia como se cria único e indiscutível. Não contra Deus, ele amou o homem. Amou o homem por amor ao homem, por amor à razão e ao pensamento, porque só ao homem cabe decidir sobre o que pretende ser: besta ou supremi spiritus? A escolha é vossa: «a partir do momento em que nascemos na condição de sermos o que quisermos, que o nosso dever é preocuparmo-nos sobretudo com isto: que não se diga de nós que estando em tal honra não nos demos conta de nos termos tornado semelhantes às bestas e aos estúpidos jumentos de carga».
   A escolha é vossa, mesmo que múltiplos sejam os caminhos para cada uma das opções. Em optardes pelo caminho do juízo, lembrai-vos de como apenas com razão e amor podeis limpar a alma da sujidade e dos vícios que a conspurcam: a inveja, a mentira, o despotismo, a avareza, o racismo, o ódio à diferença, a intolerância, o etnocentrismo, o hiperbolismo, a mania de que se é superior aos outros, o nepotismo, a cagança… Quanto ao mais, tentai viver o mais apaixonadamente possível cada momento das vossas vidas, não desperdiçando um segundo que seja com a vida daqueles cuja opção foi o atalho da brutalidade, o caminho das bestas, o desperdício deste bem precioso e efémero que é estar vivo.

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