terça-feira, 14 de maio de 2019

MONDA



Quatro livros publicados: O Pequeno Mal (Edições Sempre-em-Pé, 2011), El Segundo (edição do autor, 2015), RSO&SBC (Douda Correria, 2018), este escrito a meias com Ramiro S. Osório (n. 1939), e Monda (Edições Sempre-em-Pé, Abril de 2019). No jornal Público, Luís Miguel Queirós referiu-se-lhe há tempos como uma voz dissonante da novíssima poesia portuguesa. Colocando de lado a problemática dos novíssimos, podemos indagar a questão da dissonância. O que os poemas coligidos em Monda oferecem de incomum no vasto, díspar e complexo mundo da poesia portuguesa actual é o culto da rima, realizado com apuro rítmico que não é frequente encontrarmos nas novas gerações. O poema Champanhe é bom exemplo:

Na noite em que inventaram o bagaço
Vim a saber depois
Pensaram em nós dois
Na noite em que inventaram o bagaço
Como que por magia
Sabiam que eu havia
De o usar pra puxar o lustro ao espaço
Até os olhos doerem de brilhantes
Porque goste-se ou não
É assim que as coisas são
E nunca voltam a ser como eram
Dantes.

Mas o título deste poema denuncia o seu tempo. Champanhe é fruto da ironia, figura de retórica altamente vulgarizada nos dias correntes. 
   A poesia de Sebastião Belfort Cerqueira (n. 1987) encaixa lindamente nos carris instaurados no século XX português por um poeta como Alexandre O´Neill. De resto, é nele que pensamos quando lemos o poema Paisagem da página 29: «Fico como o do cherne / Contente com o empate» (p. 29). Também muito de agora é a salada de referências mais ou menos óbvias. Da citação roubada aos Fleetwood Mac para epígrafe do livro a um poema evocativo do poeta norte-americano Shel Silverstein, da dedicatória a Ramiro S. Osório a uma evocação de Roberto Carlos — «E que tudo o mais / Vá prò inferno» (p. 60) —, muitos são os faróis que alumiam estes versos. Alguns de convivência improvável. Esta é uma das características mais sedutoras de Monda, a capacidade de conciliar a inquietação de um Álvaro de Campos ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra com o punk desabrido de uns Butthole Surfers. 
   Inquieta ou indiferente, desinteressada ou melancólica, esta poesia exibe no seu aspecto mondado uma pulverização de referências da qual absorvemos um prazer de leitura a que não há-de ser alheio o divertimento da escrita. O sol, o mar, dias lindos, como que surgem envoltos na incerteza de uma piada. O cinismo do discurso recorre ao jogo semântico, como nesse Terceiro poema sobre o mar em que a preposição “sobre” surge com o duplo sentido de “em cima de” e “acerca de”: «Sobre o mar / Como um destroço / À procura de ir ao fundo / Da questão que ninguém pôs / (Chama-se sol)» (p. 15). Por vezes o poema resvala para o autoquestionamento, mas sempre com a clara intenção de lhe retirar qualquer “importanticidade”. Pode um poeta assim ser acusado de ligeireza, o que em si mesmo não é defeito nem virtude. Em nada havendo a perder ou a ganhar, o que interessa, no final, é o usufruto livre das palavras. E estes poemas sugerem essa liberdade, porventura epicurista na raiz filosófica que possam ter: «Vou passar a tarde a rir / Como um perdido» (p. 25). Onde outros escrevem lágrima, Sebastião Belfort Cerqueira escreve riso, onde aqueles escrevem tristeza, este grafita alegria, onde alguns mergulham na dor, este procura fazer emergir o prazer, onde aqueles cultivam melancolia, o autor de Monda parece colher contrastes. Ganha o leitor com a diversidade.

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