Usados desde os tempos da China imperial, os dazibao
tornaram-se muito populares durante a chamada Revolução Cultural. Eram um
instrumento de delação que favorecia o anonimato, sem quaisquer filtros contra
a calúnia, o boato ou a mera intriga. Mao transformou-os num purgante social.
Cartazes enormes expostos publicamente, com as acusações mais diversas, levavam
à perseguição dos visados forçando sessões de crítica cujo fim último era a
humilhação ou a execução. Xu Yulan foi vítima de um desses cartazes, depois de
alguém a ter acusado de prostituição. Xu Sanguan, o marido, sabia que o mais
velho dos seus três filhos não era do seu sangue. Resultara, segundo Xu Yulan,
de uma violação. Ainda assim, Xu Yulan foi obrigada a permanecer vários dias
numa avenida da cidade com uma placa pendurada ao pescoço onde se lia: “Prostituta
Xu Yulan”. A história é-nos contada pelo escritor chinês Yu Hua (n. 1960) no
seu segundo romance, publicado em Portugal com o título Crónica de Um Vendedor
de Sangue (Relógio D’Água, Fevereiro de 2017). A tradução de Tiago Nabais foi
realizada a partir do original chinês.
A Revolução Cultural é um dos temas predilectos do autor,
aqui retratada a partir do drama de uma família que tudo faz pela sobrevivência.
Órfão de pai, abandonado pela mãe, Xu Sanguan é distribuidor de casulos numa
fábrica de seda. A pobreza leva-o a vender sangue como forma de subsistência,
esse bem precioso onde a própria vida se condensa. «Uma pessoa pode vender
farturas, pode vender a casa ou a terra… Vender sangue é que não. Mesmo que se
venda o corpo, não podemos vender sangue. O corpo é de cada um, mas o sangue
pertence aos antepassados» (p. 82), diz-lhe a mulher. Yu Hua relata esta vida
com comovente clareza, sem artifícios semânticos ou narrativos. A sua poesia é
como vento afagando as copas das plantas. Os diálogos são de uma simplicidade
desarmante, claros e objectivos como os gestos das personagens, gente humilde e
modesta com traços de carácter que sobressaem mais pela honradez das decisões
do que pela complexidade das reflexões. Porém, por detrás deste pano movem-se as sombras da miséria. Os cenários repercutem uma vida de privações e de
ignorância, a ingenuidade das pessoas é afectada pelo medo, há cedências à
corrupção e as hierarquias sociais surgem bem definidas.
A bondade no coração de Xu Sanguan comove-nos na mesma
proporção em que a maldade social que o rodeia nos repugna, uma faz a outra
sobressair em equilíbrio tipicamente taoista. Ele coloca a vida em risco pela
família, vende o seu sangue para garantir a sobrevivência dos que são do seu
sangue, mesmo do filho que sabe não ser seu. No fundo, esta Crónica de Um
Vendedor de Sangue é também a crónica de um conservador de sangue que acima da
sua existência coloca o valor da família. Ele sabe desse valor por lhe ter
faltado a sua, sabe quão importante para si foi ser ajudado por um tio que mal conhecia,
sabe da força desses laços que resistem a tudo quanto se lhes possa opor.
Sabe-o com a clareza das coisas puras. Mas também sabe como é fácil um homem perder
resistências, sejam elas morais ou físicas, cedendo às vontades mais mórbidas.
A vingança é uma delas. Por isso lhe ouvimos dizer aos filhos que quando
crescerem têm de violar as filhas do homem que lhes violou a mãe. A questão que coloca mais vezes ao longo de vinte e nove capítulos é: até onde
estás disposto a perdoar? Talvez a resposta seja mais simples do que parece,
talvez possa ser: até onde chegar a consciência dos meus erros, das minhas
falhas, dos meus desejos mais maldosos.
A história da família Xu não é diferente da história de muitas
famílias, apesar das circunstâncias que condicionam e definem a acção. O que a
torna especial é a sua dimensão simbólica. Yu Hua pretende retratar um período
específico da história chinesa desviando-se das singularidades políticas que
caracterizam o seu país. Por detrás desta família esconde-se o fantasma do
grande líder, do grande educador, daquele a quem o povo devia amar mais do que
à própria família. Daí que quando Xu Sanguan se propõe matar a fome dos filhos
cozinhando para eles com a boca — «Com a minha boca, vou cozinhar um
prato para cada um e vocês podem saboreá-lo com os ouvidos» (p. 118) —,
o que na realidade o narrador está a fazer é a denunciar as consequências sociais de um regime
numa determinada época. O que ele nos quer dizer é que Mao alimentava o seu
povo pelos ouvidos, deixando-lhes vazio o estômago. O resto já toda a gente
sabe como é: «Estava velho e no seu corpo corria mais sangue morto do que vivo»
(p. 236).
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