quarta-feira, 15 de maio de 2019

CRÓNICA DE UM VENDEDOR DE SANGUE


Usados desde os tempos da China imperial, os dazibao tornaram-se muito populares durante a chamada Revolução Cultural. Eram um instrumento de delação que favorecia o anonimato, sem quaisquer filtros contra a calúnia, o boato ou a mera intriga. Mao transformou-os num purgante social. Cartazes enormes expostos publicamente, com as acusações mais diversas, levavam à perseguição dos visados forçando sessões de crítica cujo fim último era a humilhação ou a execução. Xu Yulan foi vítima de um desses cartazes, depois de alguém a ter acusado de prostituição. Xu Sanguan, o marido, sabia que o mais velho dos seus três filhos não era do seu sangue. Resultara, segundo Xu Yulan, de uma violação. Ainda assim, Xu Yulan foi obrigada a permanecer vários dias numa avenida da cidade com uma placa pendurada ao pescoço onde se lia: “Prostituta Xu Yulan”. A história é-nos contada pelo escritor chinês Yu Hua (n. 1960) no seu segundo romance, publicado em Portugal com o título Crónica de Um Vendedor de Sangue (Relógio D’Água, Fevereiro de 2017). A tradução de Tiago Nabais foi realizada a partir do original chinês.
   A Revolução Cultural é um dos temas predilectos do autor, aqui retratada a partir do drama de uma família que tudo faz pela sobrevivência. Órfão de pai, abandonado pela mãe, Xu Sanguan é distribuidor de casulos numa fábrica de seda. A pobreza leva-o a vender sangue como forma de subsistência, esse bem precioso onde a própria vida se condensa. «Uma pessoa pode vender farturas, pode vender a casa ou a terra… Vender sangue é que não. Mesmo que se venda o corpo, não podemos vender sangue. O corpo é de cada um, mas o sangue pertence aos antepassados» (p. 82), diz-lhe a mulher. Yu Hua relata esta vida com comovente clareza, sem artifícios semânticos ou narrativos. A sua poesia é como vento afagando as copas das plantas. Os diálogos são de uma simplicidade desarmante, claros e objectivos como os gestos das personagens, gente humilde e modesta com traços de carácter que sobressaem mais pela honradez das decisões do que pela complexidade das reflexões. Porém, por detrás deste pano movem-se as sombras da miséria. Os cenários repercutem uma vida de privações e de ignorância, a ingenuidade das pessoas é afectada pelo medo, há cedências à corrupção e as hierarquias sociais surgem bem definidas.
   A bondade no coração de Xu Sanguan comove-nos na mesma proporção em que a maldade social que o rodeia nos repugna, uma faz a outra sobressair em equilíbrio tipicamente taoista. Ele coloca a vida em risco pela família, vende o seu sangue para garantir a sobrevivência dos que são do seu sangue, mesmo do filho que sabe não ser seu. No fundo, esta Crónica de Um Vendedor de Sangue é também a crónica de um conservador de sangue que acima da sua existência coloca o valor da família. Ele sabe desse valor por lhe ter faltado a sua, sabe quão importante para si foi ser ajudado por um tio que mal conhecia, sabe da força desses laços que resistem a tudo quanto se lhes possa opor. Sabe-o com a clareza das coisas puras. Mas também sabe como é fácil um homem perder resistências, sejam elas morais ou físicas, cedendo às vontades mais mórbidas. A vingança é uma delas. Por isso lhe ouvimos dizer aos filhos que quando crescerem têm de violar as filhas do homem que lhes violou a mãe. A questão que coloca mais vezes ao longo de vinte e nove capítulos é: até onde estás disposto a perdoar? Talvez a resposta seja mais simples do que parece, talvez possa ser: até onde chegar a consciência dos meus erros, das minhas falhas, dos meus desejos mais maldosos.
  A história da família Xu não é diferente da história de muitas famílias, apesar das circunstâncias que condicionam e definem a acção. O que a torna especial é a sua dimensão simbólica. Yu Hua pretende retratar um período específico da história chinesa desviando-se das singularidades políticas que caracterizam o seu país. Por detrás desta família esconde-se o fantasma do grande líder, do grande educador, daquele a quem o povo devia amar mais do que à própria família. Daí que quando Xu Sanguan se propõe matar a fome dos filhos cozinhando para eles com a boca «Com a minha boca, vou cozinhar um prato para cada um e vocês podem saboreá-lo com os ouvidos» (p. 118) , o que na realidade o narrador está a fazer é a denunciar as consequências sociais de um regime numa determinada época. O que ele nos quer dizer é que Mao alimentava o seu povo pelos ouvidos, deixando-lhes vazio o estômago. O resto já toda a gente sabe como é: «Estava velho e no seu corpo corria mais sangue morto do que vivo» (p. 236).

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