sábado, 4 de maio de 2019

UMA FOTOGRAFIA APONTADA À CABEÇA


A tradição judaico-cristã instaurou entre nós o problema da queda, ao colocar sobre as decisões humanas o ónus do pecado. Deus ter-nos-ia criado à sua imagem e semelhança, cabendo-nos assegurar a santidade através de comportamentos impecáveis. Mas logo esses comportamentos traíram o criador quando, ainda no Génesis, quisemos saber mais do que devíamos e metemos a mão na árvore do conhecimento. A história do homem na Terra é a história de um ser em queda, ou seja, de um ser a aterrar, vindo do céu para a Terra, de um ser em estado de deterioração. Fomos feitos como anjos, acabamos como homens. À evolução das espécies apomos a degenerescência da carne, criatura entre as criações divinas. Deus ofereceu-nos o livre arbítrio, podemos sempre mudar, a mutabilidade é, aliás, a nossa característica mais evidente, nota-se no próprio corpo, na passagem do tempo pelo corpo. A morte é o fim último dessa degenerescência, sendo até possível entender entre a verticalidade do ser vivo e a horizontalidade do ser morto essa imagem de queda. Um corpo em queda é um corpo à morte, é um corpo que desfalece.
   A questão da morte não é nova na poesia de José Anjos (n. 1978), poeta que ao terceiro livro se afirma como um dos mais difíceis de situar na poesia contemporânea portuguesa. Facilmente o associamos à tradição surrealista onde a imagem pesa sobre os versos como numa pintura, poesia dirigida ao olhar com impetuosos elementos conotativos. Mas ainda que lhe aceitemos a dimensão onírica, esta poesia não é essencialmente automática. De resto, quantos surrealistas o foram verdadeiramente? Vejamos, a título de exemplo, como o tema da queda se coloca. No poema intitulado Lengalenga do Precipício (p. 17) a ideia de “nada” baliza o tempo, tudo quanto é manifesta-se entre dois “nadas” (antes de ser, depois de ser) que delimitam um espaço de terra (onde se é). O poeta diz: «caímos na sua morte quando ele quer / caímos ainda vivos com os outros / no pensamento, caímos no pensamento / dos outros // mesmo assim, a inevitabilidade da queda / teima em escapar à percepção» (p. 16). A queda é um estado que apela à «consciência de si próprio», é no confronto com os outros que nos apercebemos dessa condição humana, a queda está tão associada ao pensamento como ao corpo, a sua consciência resulta da inter-relação entre corpo e pensamento: «sem consciência de si / a queda será apenas um peso morto» (p. 17).
   O tom reflexivo do poema afasta-o de uma lógica inconsciente, imprime nas palavras um ritmo de pensamento que sugere interpelações, dúvidas, um percurso concretizado entre a inquietação da dúvida e a sua expressão. Mais à frente, num poema sem título, retoma-se esta “lengalenga do precipício” num contexto onírico. O sonho coloca-nos dentro de um carro numa estrada que se vai estreitando junto a um precipício, a imagem é asfixiante, denota desespero: «estás a cair no vazio / e ainda consegues ver as luzes / da estrada que continua, / as luzes da aldeia que deixaste para trás // algures há uma festa / onde talvez ainda te esperem // mas continuas a cair, / com uma lucidez absurda, à espera / do impacto: / é isso a tua vida agora» (p. 63). Lembra-nos da anedota sobre o indivíduo em queda que vai dizendo “até aqui tudo bem”, ainda que nos poemas de José Anjos não vislumbremos qualquer sentença moralizante. Os poemas de uma fotografia apontada à cabeça (Abysmo, 2019) colocam-se antes num lugar de busca do espanto perdido, constroem-se durante a execução à medida que se interpelam a si mesmos e nos provocam com questões essenciais e inesgotáveis. O luto e a morte repensam-se a partir de noções fortemente ligadas à vida, não são matéria exclusivamente mental. Tudo acontece no centro de uma carne que vive com a consciência de que apodrece, sendo altamente inspiradora a capacidade que têm de nos agitar o pensamento: «a vós que sabeis / tudo sobre o tempo / e outras desgraças / da contemporaneidade // não vos entendo // a mim / questiona-me ainda / a engenharia de um dia / simples» (p. 79).
   Mais equilibrado e sólido do que os livros anteriores do mesmo autor, este é sem dúvida um dos mais estimulantes livros de poesia portuguesa contemporânea dos últimos 20 anos. Nele tudo se joga sem excessos, os ritmos que não enjeitam a rima, o fulgor imagético, a beleza de uma interrogação constante sobre o lugar do homem na Terra, a busca incessante e incansável de respostas (mesmo para aquilo que sabemos não ter resposta), a riqueza do pensamento, a postura sóbria face à dor da perda, a extraordinária capacidade de síntese:

EXPLICAÇÃO DO ACTO

espelho que devolve
a intenção