quinta-feira, 11 de julho de 2019

BLUFF



   Desconheço a origem da palavra bluff, que segundo o Wiktionary talvez esteja no termo bluffen (fanfarronice, alarde), mas pelo que obriga a necessidade aprendi a detectá-lo no olhar dos parceiros de cartadas. Para o poker, por exemplo, o bluff está como a simulação na jogada de futebol, é pura ironia, dar a entender algo e fazer o seu contrário. Várias circunstâncias da vida obrigam-nos a estar atentos ao bluff, quando não a tirarmos proveito dele. A carga ética negativa que poderia ter, assemelhando-se à hipocrisia, transforma-se numa espécie de ferramenta, escudo de defesa no mundo cínico das “notícias falsas”, de todo o tipo de abusos e de manipulações, seguidas de proverbiais perdas de memória quando toca ao esclarecimento da verdade. Daí que o bluff não se oponha à verdade, muitas vezes é o estribo onde a investigação se apoia. O “cogito, ergo sum” cartesiano, por exemplo, é bluff em defesa da racionalidade, matéria que nos levaria a uma discussão infindável se a tal estivéssemos dispostos.
   António Ferra (n. 1947), autor de obra multidisciplinar iniciada na década de 1970, optou por dar o título de Bluff (Douda Correira, Março de 2019) a um dos seus mais recentes livros. Em literatura o bluff pode também confundir-se com o fingimento pessoano, porventura assumido nestas narrativas breves a partir da epígrafe tomada de empréstimo ao modernista Almada Negreiros. Tal como acontecia em Marias Pardas (& etc, Março de 2011), outro livro do autor onde o poético e o narrativo se misturam, neste o carácter lúdico da linguagem é logo detectável nos inúmeros jogos fonéticos, trocadilhos, paranomásias. O primeiro texto intitula-se “Entrudo são”, o último chama-se “Equílogo” (por causa de um cavalo que entra pelo meio). A verdade é que a essência destes textos está em serem o nada com que se parecem, divertimentos carregados de ironia onde o mundo actual surge pintado em figuras tipo da nossa sociedade tais como «os youngmen de fato preto» ou «os funcionários do bluff», contando-se entrementes a história de uma mulher, de seu nome Graziela, e seu marido, Jacinto.
   Ao contrário do que sucede nas fábulas, aqui as personagens são humanos com comportamentos animais. Mas de modo semelhante à fábula também estas narrativas apresentam no final uma espécie de moral, espécie porque o que enunciam entre parêntesis são falas, vozes, diálogos, cuja principal característica é a sua absurda veracidade. Exemplo:

De toda a água me rio

Graziela precisava de uma certidão de emagrecimento, documento imprescindível para voar low cost. A senhora do balcão de atendimento sugeriu-lhe que fizesse tudo online, e que comesse apenas legumes, uma só peça de fruta, duas bolachas integrais e, sobretudo, que bebesse muita água, toda a água de um rio para perder o peso dos dias e das noites e para expelir na urina os abusos que sofria.
E que voltasse ao fim de cinco dias inúteis.

[ Já não faço nada online, é tudo bluff, desde que nasceu a minha filha deixei-me disso, nem mesmo sexo virtual, tenho medo de engravidar outra vez.]

   O aspecto cómico destes textos está na capacidade que revelam de caricaturar os hábitos (preferencialmente os maus) e os costumes da vida moderna, dita cheia de pressas para um fim seguramente universal e claramente passageiro. Ao lê-los lembramo-nos das contradições que nos contornam a negro dias e noites, pensamos na pertinência de uma antimoral que nos desobrigue de afazeres esgotantes e esgotados de humanidade. Pelo caminho da ridicularização, estes textos denunciam a bizarria do “modo funcionário de viver”, retirando a gravata à prosa e brincando alegre e livremente com as palavras. Aceitam até certa ingenuidade nos comportamentos das personagens, preferindo observá-las a censurá-las. Não há mal algum em chamar-lhes poesia, dessa que tantas vezes se confunde com a pequena narrativa reclamado para si mesma o direito a não ser só uma coisa nem outra, ser livre, sem rótulo nem arrumação.

[—Tens as mãos transpiradas. Passa-se alguma coisa?
— Não, não, é só esta desumanidade que se entranha no corpo]

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