sábado, 17 de agosto de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #23



   Agora que regressados desse lugar onde homem e mulher andam nus sem sentirem vergonha por isso, voltamos a tapar o corpo com angústia e sentido do dever, deixai-me contar-vos de vozes exiladas nas suas próprias gargantas. Se por acaso já vos chegou aos ouvidos o nome Afeganistão, por certo não terá sido pelas melhores razões. Só há 100 anos foi aquele território reconhecido como estado soberano. Os pachtuns são aí o maior grupo étnico, com ele se confundindo até à raiz de um nome: pachtum e afegão são sinónimos. 
   Uma das tradições mais antigas desta etnia, como de resto sabeis ainda hoje muito viva em toda a cultura árabe, é a literatura oral. Não é difícil encontrar num país árabe, até nas praças mais assediadas pelos turistas, grupos de gente a ouvir histórias contadas por anciões, composições mais ou menos improvisadas que, na poesia, adquirem a forma de canto. Ao contrário do texto moralizante, arreigado à religião, estas improvisações vocais destacam-se pela liberdade do discurso, exaltando o amor e a paixão, a música e o vinho, tudo quanto liga o homem à terra inquietando-o como inquietas ficam as plantas à passagem do vento. 
   A natureza surge assim celebrada, os sentimentos profundos e os anseios manifestam-se sem peias. Ao landay, forma poética breve como o haiku japonês, acrescenta-se ainda a característica muito rara de ser praticado por mulheres. Em “A Voz Secreta das Mulheres Afegãs” (Cavalo de Ferro, Fevereiro de 2005), recolha assinada por Sayd Bahodine Majrouh (1928-1988), poeta e filósofo afegão, procurou-se fixar para conhecimento universal alguma da magia produzida pelos landay. Imaginamos que ao texto algo escapará que o som das vozes sublimaria, mas devemos sentir-nos gratos por pelo menos assim podermos aceder a estes poemas que nos chegam «como um grito do coração, como um relâmpago, como uma chama». 
   Ficai sabendo dessas mulheres que cantando-se a si mesmas revelam sua precária condição, mulheres oprimidas por um sufoco que o canto liberta, por uma servidão que a poesia subleva, por uma humilhação que a palavra rebela. O suicídio e o canto, como sublinha Sayd Bahodine Majrouh na introdução a este livro que a poeta Ana Hatherly mudou para a nossa língua, são o testemunho de um protesto escondido da mulher pashtun. E então perceberemos com outra clareza a intensidade da voz clara:

Olhai do esposo a horrível tirania:
Bate-me e proíbe-me de chorar.

Para assim compreendermos que por detrás do poema esconde-se um poder inextinguível que pouco ou nada tem que ver com escola e técnica, mas tudo deve ao sentir da vida que descobre caminhos entre a treva para nos levar a um modo de ver que é modo de ser:

Adormece em meus olhos
A insónia das minhas noites reduziu-me a pó

Só então, minhas filhas, o amor deixará de ser a posse que escraviza para se soltar em dúvida social e desafogada paixão. A mulher submissa redescobre-se no desejo, recusa a condição de objecto e insurge-se contra o martírio.  E se nada disto é tão simples quanto o coração deseja, deixai-vos impressionar pela respiração do canto que lamenta «não ter vivido suficientemente, não ter provado a sua beleza, a sua juventude e as alegrias do amor»:

Vem e sê uma flor sobre o meu peito
Para que eu possa, cada manhã, refrescar-te com o meu riso

Sem comentários: