segunda-feira, 19 de agosto de 2019

UM POEMA DE GIANNI SICCARDI



SÃO ESTAS AS PALAVRAS QUE AMO

se tivéssemos um ofício em que nos reconhecêssemos
e vontade de envelhecer
se não conhecêssemos tantos lugares de lazer
tantas ruas desordenadas e abertas
tantos bares e hotéis
buracos de perdição ou de violência
onde se usam palavras extraviadas
recursos rápidos
encontros sem destino
vidas diferentes
e houvéssemos abandonado o desejo
de voltar a partir
de conhecer gente fora de órbita
alimentos estranhos
músicas fáceis
ilhas distantes

se não tivéssemos amigos mortos
e inimigos
amores esquecidos
se não estivéssemos cansados
dos diários da manhã
dos desportos e das execuções
das estrelas fugazes
da crueldade da rua
dos ruídos da cidade
a que dentro em breve
juntaremos outros ruídos
deixando que o relógio da cozinha
que o sol
reparem estas peças
as tuas coisas e as minhas coisas
que aqui entrem o calor e os gritos
que as nossas pobres coisas
sejam chicoteadas pelo sol e pelos mal entendidos
que aqui entre a violência e se vá
sem saber que aqui um dia
entraram o desespero e o amor
ou algo que desesperava por parecer amor

se não tivéssemos as palavras
palavras de amizade de fastio de indiferença
palavras complicadas com o amor
palavras que recordam o amor
ainda que não lhe pertençam
se não tivéssemos o ruído das palavras
se não estivéssemos cansados de tanta estupidez
e de tanto esquecimento

herdei de ti
uma solidão incompreensível
passou a minha solidão
que não compreendo
ainda que sempre te encontres entre os ruídos das minhas palavras
ateei este fogo para te reconhecer

Gianni Siccardi, versão de HMBF a partir do original coligido por Marta Ferrari, in Antología – La poesia del signo XX en Argentina, vol. 7 da colecção La Estafeta del Viento, dirigida por Luis García Montero e Jesús García Sánchez, Visor Libros, 2010,pp. 317-319.

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