quarta-feira, 4 de setembro de 2019

MANUAL PARA INCENDIÁRIOS


A mão ao assinar este papel arrasou uma cidade.
Dylan Thomas


   Como pós-modernos, devemos recusar as narrativas clássicas.
   A saber: a suspeitíssima versão, ou versões, em torno do incêndio de Roma, atribuídas a Nero, a descrição do incêndio de Londres e as soluções de Jonathan Swift sobre a fome, com criancinhas para confeccionar em estilo english pie, Bagdade invadida pelos mongóis ou pelos americanos.
   Esmirna, destruída pelos turcos, não é solução a seguir. Ficou-lhe uma aura trágico-romântica que não convém, coisas com diásporas e sepharads dentro, canções a não escutar. Deve, por igual, recusar-se a versão de Tolstoi, nesse calhamaço que dá pelo nome de Guerra e Paz, até porque está demasiadamente bem escrita e o homem é suspeito de laivos nacionalistas. Além do mais, perpassa um tom épico, aquela voz grande apelando à grande mãe russa, e incêndios assim pecam pelas motivações políticas, sempre suspeitosas e obscuras, que não vêm ao caso. Um dos erros clássicos que este manual dá sempre como exemplo é o da Biblioteca de Alexandria. Embora não se saiba ao certo quem foi o culpado nem quantas foram as tentativas, a verdade é que o incêndio vem perdurando na memória, subiu à condição de mito, e isso é o que um bom incendiário deve sempre evitar. A por causa ou coisa é mesmo essa, a memória.
   A premissa básica deve ser a pura imanência do acontecimento, uma contemplação celebratória da physis grega e da jubilação de um dos seus quatro elementos, o fogo. Provocar a sua ocorrência deve ser considerado um acto de arrogância e uma clara interferência na sacralidade das forças da natureza.
   Deve andar-se e usufruir do que existe — seja património edificado ou um simples novelo de tsintsiva — com a mais sublime das indiferenças, usando-se, enquanto duram, esses avatares ou artefactos ou frutos, sem lhes conceder a mais leve das atenções. Qualquer outra atitude configura infracção ou crime do foro intelectual. Quem for apanhado com lentes especiais a fazer convergir os raios solares para qualquer superfície, inócua que seja, deve ser imediatamente levado a uma consulta psiquiátrica e ver toda a sua infância esquadrinhada: se é filho de pai bombeiro, coleccionador de caixas de fósforos, fumador compulsivo e que tipo de isqueiro usa, ex-revolucionário — manifestamente deslocado no tempo — guardando ainda na estante colecções encadernadas do saudoso Iskra. Porque isso será prova de que quer interferir, provocar, experimentar. E o fogo é irredutível a qualquer experimentação.
   Outra regra de ouro que qualquer incendiário deve seguir é a total rejeição das utilizações metafóricas tão do uso dos sonetos. Ele não poderá nunca entender decassílabos como o daquele zarolho colonialista que dava pelo nome de Camões e que escreveu enormidades como essa de que «amor é um fogo que arde sem se ver». Quem age assim é um usurpador de sentidos. E urge bramar contra ele.
   Não obstante a traição desta língua coxa, que faz do incendiário um agente activo, actor e/ou actante do acto de incendiar, diz o manual que o autêntico mestre é aquele que paira numa espécie de nirvana, uma absoluta indiferença a tudo.
   Espero não estar a cometer nenhuma infracção ao revelar, em resumo forçosamente tosco, as autênticas pepitas de ouro que o manual encerra. Não vou dizer onde descobri o in-quarto forrado a carneira, com um dos cantos levemente chamuscado, a patine do tempo dando-lhe aquele aspecto grave das obras que realmente fundam uma cultura e modelam uma civilização. Face aos últimos acontecimentos, sugiro a sua leitura atenta. Não vá dar-se o caso de quererem agir e de assim se tornarem incendiários incompetentes.
   A mais extrema sabedoria é sempre a mais simples. E agir cansa. Maputo é um bom exemplo dessa sagesse. Do Prédio Pott às instalações do antigo Instituto Nacional de Cinema, do Bazar ao que vier a seguir, a cidade dá cartas. Quando age estraga: transforma a SUT numa bomba de gasolina, o almoxarifado num híper, a mesquita velha numa fachada incaracterística. 
   E o verso do poeta bêbado e galês, que não é exemplo para ninguém, posto em epígrafe, está errado.
   O fogo é o fogo, tal como o ar é o ar, a terra é a terra e a água é a água. É assim. Os antigos de todas as culturas sabiam-no.
   Ardeu?
   Sim, ardeu. E qualquer menino de escola sabe a resposta.
   Foi o fogo.
   Qualquer metafísica, interpretação pragmática, lamúria oportuna, estará sempre a mais.
   Os incendiários imóveis sabem-no.
   Adoremos o fogo.

Luís Carlos Patraquim, in Manual Para Incendiários e Outras Crónicas, Antígona, Outubro de 2012, pp. 135-138.

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