terça-feira, 3 de setembro de 2019

UM POEMA DE LUÍS CARLOS PATRAQUIM


O CÍRCULO

À memória de meu pai

E se não houvesse o Inverno, esquálida brancura
Pendendo das árvores,
Sua seca respiração em pose, sustida;

Se o ritmo das estações reverberasse nas águas
O que em ti foi tumulto, a cor em si bemol
Do figo, matiz de verde sobre o ouro
Da encosta inclinando-se na baía,

E um pássaro se intrometesse na imobilidade
Em que pairas, lira que te humedecesse a pele escamada
E o longo círculo onde vais recolhendo
A voz,

Onde pressinto, grave, todos os percursos do silêncio,
O que em ti foi música e regressa pelos mesmos
Nocturnos caminhos onde a praça se suspende
E o tempo se esvaiu,


— lábil, intumescida, só a folha
e da luz o que a gelosia retalha, sombra
textuando-se no lajedo sossegado 

Não fora isso e a linha entre continentes,
Ao de leve esfarelando-se em teu corpo,
E a mão que um dia se abriu e ora
Pousa o último tremor sobre o lençol,

E o teu silêncio, o teu silêncio, onde
Florescem, sangrentas, as acácias da Rua de Lidemburgo
E Lagos estremece em azul e punge
Uma solidão ática e um boi se recolhe
No labirinto da aorta que infla,

A boca, a tua boca e o teu silêncio
E não mais a pergunta, nenhuma,
E o teu pasmo e o das estrelas, ao de leve
A cacimba lenta submergindo-te o rosto,

Pela tarde onde caminho,
E a pedra se inscreve no sol que neva.


Luís Carlos Patraquim, in Pneuma, Caminho, Janeiro de 2009, pp. 48-49.

Sem comentários: