domingo, 22 de setembro de 2019

VILA VELHA DE RÓDÃO: POESIA, UM DIA (2019)


Para a Graça Batista
Para o Jaime Rocha

A casa tinha um arado pendurado no tecto. Talvez ali estivesse para nos lavrar o pensamento, ou simplesmente cumprindo a função decorativa de uma obsoleta ferramenta de trabalho. Certo é que me sentei a olhá-la como animal ferido, lembrei-me de meu avô a resmungar com a terra. Cada pessoa tem as suas memórias de privação e dor, é inesperada a mão que as traz à superfície do pensamento.


Por exemplo, a marginal outrora vestida de preto, mulheres rogando por familiares recolhidos no mar, os barcos a desaparecer no horizonte e a angústia a manifestar-se num pranto de súplicas. Era incerto o reencontro. Se a memória for a terra que lavramos, na esperança de que as palavras germinem como sementes, então a página é já a toalha estendida sobre a qual degustamos o alimento.  


Anterior às locomotivas do sono e ao silêncio, uma lua distante espreita-nos por entre as nuvens. Bandos de pássaros cumprem suas funções à beira de um lago, sobrevoando o langor das águas paradas, explorando canaviais. Dizemos plúmbeo, merencório e gemebundo para nos rirmos da solenidade que os poetas metem no olhar. Eu mesmo agora falei das locomotivas do sono, do langor das águas paradas. E ao reler-me, sorri. Na verdade, é apenas água e lodo o que nos aguarda do outro lado das palavras. 


O sopro anima a flauta longa de taboca, de novo nos encontramos no lugar nocturno das aves que em bando pontilham o ar com seus voos sinuosos. Devia ser sempre assim, tão simples como o vento a fazer vibrar o vácuo, respiração circular de um som que atravessa o silêncio e nos chega como uma sílaba estendida sobre as águas, corpo que levita e paira. É este o som do chamamento.


Os olhos vêem de dentro para fora. Se olhamos uma árvore, logo nela projectamos nossas fobias mais profundas. Eu vejo um homem com as mãos em pala a olhar para o horizonte, tu vês um velho ensonado a esfregar os olhos, ela vê uma mãe a chorar o filho martirizado. Vemos tudo menos uma árvore ressequida à sombra dos plátanos, de atalaia a uma conferência de aves que desengana exílio e abandono. 


Eis o contorno a negro da utopia, ver de dentro para fora, aprender passo a passo a lentidão do ar, sabendo que a saída dos labirintos corresponde a uma certa forma de afastamento, não das coisas, mas de nós próprios. A ti me entrego, Senhora das Dores, a ti me entrego feito ruína, pedra sobre pedra há mil anos exposta no alto de um monte, a ti todas as minhas preces ao som do cravo e das harpas de vento. 


Não vi grifos, mas abraçou-me a paisagem com enormes asas de afecto. Por ti incendeio todas as velas, lavro a cera, cada uma com a forma de uma parte do meu sangue, peço-te que protejas tanto os meus amigos como os meus inimigos, que os libertes dos malefícios da melancolia e do rancor, que lhes ilumines a estrada da criação para que juntos ou separados possamos continuar a percorrer os labirintos da loucura que é estar vivo e dizer: amo. 


Então chegados a esse lugar onde se escava a terra para colher o barro com que se moldam casas e sonhos, inspiremos o perfume que adoça as águas. Podem ser estas as asas da utopia. Avisto ao largo a silhueta de quem caminha desaparecendo atrás de um monte. Sei que em desaparecendo para mim, aqui neste lugar onde me encontro, logo aparecerá para alguém no lugar oposto ao meu. E nisto de aparecer e desaparecer o mais relevante é que caminhemos. 


O mais relevante é que ao caminharmos possamos comparecer perante nós próprios com o rosto limpo, já não deslumbrados com o reflexo nas águas do rio, mas como alguém que se olha a si mesmo nos olhos do outro. A este “encontro inesperado do diverso” podemos chamar achamento. Encontro-me em ti, leitor, como tu te encontras em mim, que escrevo. Achamo-nos um no outro. É esse o fruto colhido das palavras semeadas na terra outrora arada pelo pensamento. 

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