Porque Canta Um Pequeno Coração (não (edições), Setembro
de 2019) é o segundo livro de poemas publicado por José Pedro Moreira (n.
1983). O primeiro foi Gatos no Quintal (Enfermaria 6, Março de 2018), ao qual
de algum modo agora se alude no poema “A pequena Lizzie”. Dirige-se este ao Sr.
Leitor, pressupondo em tão abstracta figura considerações acerca da matéria oferecida
pel’ «o cavalheiro com pretensões a poeta» (p. 116). Escusa de pretender, já o
é. E para tanto não necessitávamos sequer do jogo a que se propõe ao interpelar-nos
daquela forma.
Os poemas de José Pedro Moreira assumem descontraidamente
e sem preconceitos a natureza lúdica que os anima sem que a tal se restrinjam.
A própria organização deste volume parece querer sublinhar esse aspecto,
distribuindo o conteúdo por um Lado A e por um Lado B aos quais se acrescenta,
no final, um “poema escondido”, como em certos CDs passámos a encontrar, a
certa altura, temas escondidos. Clássico e modernidade conjugam-se e equilibram-se
deste modo, sem que nenhum dos lados se imponha ao outro ou revele pretensões
de protagonismo.
Dedicado à memória dos avós, os quais aparecem
retratados, especialmente, nos poemas do Lado B, este livro não negligencia a
experiência vivida enquanto fonte privilegiada do poético, mas mistura-a, por
vezes confunde-a, incorpora-a até numa leitura particular da mitologia que
alicerça a história ocidental. O efeito proporcionado é altamente compensador,
na medida em que faz descer à banalidade dos dias os heróis de uma ancestralidade
mais mitológica do que historiográfica. Se foi Deus quem nos criou à sua semelhança
ou nós que gerámos os deuses para fazer sobressair os vícios e as virtudes
humanas, pouco aqui importa. Acabamos todos a um mesmo nível, aquele em que o
vício do jogo e uma receita de culinária podem transformar-se em assunto de
poesia sem que se perca o fio à meada.
O herói clássico pode então confundir-se com o moderno
vocalista de uma banda rock que a certa altura, incomodado pelos fãs,
«pigarreia / abre os olhos / for fuck’s sake / why won’t you fuck off» (p. 23).
Os clientes mistério desta poesia são, pois, gente vulgar como o poeta de
Facebook ou os frequentadores do Akiport Cafe, a estrela rock ou anónimos que
se cruzam numa qualquer cena quotidiana, mas também um dos maiores poetas da
Roma Antiga, um célebre casal de pobres camponeses cantado por Ovídio, o avô
Augusto e a avó Alzira. Uma das características mais fascinantes desta poesia é
a cultura erudita que sugere sem necessidade de ostentação, a qual tantas vezes
derrapa, noutras circunstâncias, num pedantismo insuportável, enterrando-se numa indecifrabilidade que não permite o poema respirar.
Por vezes humorísticos, estes poemas superam com
acutilância a monotonia quotidiana, fintando-nos na volta com comoventes
ingressões pelos lugares da memória, como nessa extraordinária sequência
intitulada “A morte de Augusto”, no que poderia ser considerado um mero divertimento
sobre o fundador do Império Romano, não fora Augusto também o nome do avô a
quem o poema se dirige. Um outro poema sequência, porventura o melhor que tive
o prazer de ler este ano, glosa com hábil comicidade o excêntrico condutor de
limusines e foguetes Mike Hughes. A singularidade da personagem presta-se ao
serviço, mas o poema "TODA A VERDADE!!!" acaba por retratar, de um modo mais geral, o estado de estranheza, bizarria e extravagância a que a humanidade chegou: «e para
salvar a democracia / das maquinações / das elites liberais / foi preciso /
suspender as eleições» (p. 48).
Acerca de Gatos no Quintal sublinhei noutro texto a capacidade de
questionar a realidade a partir de um jogo persistente entre passado e
presente, prática que José Pedro Moreira desenvolve neste novo livro com
especial habilidade. O que se me tornou agora mais evidente, porém, é a emotividade
velada pela atitude lúdica e irónica. Os ambientes podem camuflar os valores
dessa emotividade, mas esta acaba por se revelar no interior de uma
narratividade que tende para remates onde a amizade e o amor se sobrepõem à
leitura histórica: «deste santuário não resta / qualquer vestígio arqueológico
/ e há bons motivos para acreditar / que os fragmentos de Riano / são uma
falsificação moderna // mas estás tão bela / naquela fotografia / ainda
vermelha / do escaldão que apanhaste / no dia anterior» (p. 61).
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