quarta-feira, 30 de outubro de 2019

PORQUE CANTA UM PEQUENO CORAÇÃO


Porque Canta Um Pequeno Coração (não (edições), Setembro de 2019) é o segundo livro de poemas publicado por José Pedro Moreira (n. 1983). O primeiro foi Gatos no Quintal (Enfermaria 6, Março de 2018), ao qual de algum modo agora se alude no poema “A pequena Lizzie”. Dirige-se este ao Sr. Leitor, pressupondo em tão abstracta figura considerações acerca da matéria oferecida pel’ «o cavalheiro com pretensões a poeta» (p. 116). Escusa de pretender, já o é. E para tanto não necessitávamos sequer do jogo a que se propõe ao interpelar-nos daquela forma.
Os poemas de José Pedro Moreira assumem descontraidamente e sem preconceitos a natureza lúdica que os anima sem que a tal se restrinjam. A própria organização deste volume parece querer sublinhar esse aspecto, distribuindo o conteúdo por um Lado A e por um Lado B aos quais se acrescenta, no final, um “poema escondido”, como em certos CDs passámos a encontrar, a certa altura, temas escondidos. Clássico e modernidade conjugam-se e equilibram-se deste modo, sem que nenhum dos lados se imponha ao outro ou revele pretensões de protagonismo.
   Dedicado à memória dos avós, os quais aparecem retratados, especialmente, nos poemas do Lado B, este livro não negligencia a experiência vivida enquanto fonte privilegiada do poético, mas mistura-a, por vezes confunde-a, incorpora-a até numa leitura particular da mitologia que alicerça a história ocidental. O efeito proporcionado é altamente compensador, na medida em que faz descer à banalidade dos dias os heróis de uma ancestralidade mais mitológica do que historiográfica. Se foi Deus quem nos criou à sua semelhança ou nós que gerámos os deuses para fazer sobressair os vícios e as virtudes humanas, pouco aqui importa. Acabamos todos a um mesmo nível, aquele em que o vício do jogo e uma receita de culinária podem transformar-se em assunto de poesia sem que se perca o fio à meada.
   O herói clássico pode então confundir-se com o moderno vocalista de uma banda rock que a certa altura, incomodado pelos fãs, «pigarreia / abre os olhos / for fuck’s sake / why won’t you fuck off» (p. 23). Os clientes mistério desta poesia são, pois, gente vulgar como o poeta de Facebook ou os frequentadores do Akiport Cafe, a estrela rock ou anónimos que se cruzam numa qualquer cena quotidiana, mas também um dos maiores poetas da Roma Antiga, um célebre casal de pobres camponeses cantado por Ovídio, o avô Augusto e a avó Alzira. Uma das características mais fascinantes desta poesia é a cultura erudita que sugere sem necessidade de ostentação, a qual tantas vezes derrapa, noutras circunstâncias, num pedantismo insuportável, enterrando-se numa indecifrabilidade que não permite o poema respirar.
   Por vezes humorísticos, estes poemas superam com acutilância a monotonia quotidiana, fintando-nos na volta com comoventes ingressões pelos lugares da memória, como nessa extraordinária sequência intitulada “A morte de Augusto”, no que poderia ser considerado um mero divertimento sobre o fundador do Império Romano, não fora Augusto também o nome do avô a quem o poema se dirige. Um outro poema sequência, porventura o melhor que tive o prazer de ler este ano, glosa com hábil comicidade o excêntrico condutor de limusines e foguetes Mike Hughes. A singularidade da personagem presta-se ao serviço, mas o poema "TODA A VERDADE!!!" acaba por retratar, de um modo mais geral, o estado de estranheza, bizarria e extravagância a que a humanidade chegou: «e para salvar a democracia / das maquinações / das elites liberais / foi preciso / suspender as eleições» (p. 48).
   Acerca de Gatos no Quintal sublinhei noutro texto a capacidade de questionar a realidade a partir de um jogo persistente entre passado e presente, prática que José Pedro Moreira desenvolve neste novo livro com especial habilidade. O que se me tornou agora mais evidente, porém, é a emotividade velada pela atitude lúdica e irónica. Os ambientes podem camuflar os valores dessa emotividade, mas esta acaba por se revelar no interior de uma narratividade que tende para remates onde a amizade e o amor se sobrepõem à leitura histórica: «deste santuário não resta / qualquer vestígio arqueológico / e há bons motivos para acreditar / que os fragmentos de Riano / são uma falsificação moderna // mas estás tão bela / naquela fotografia / ainda vermelha / do escaldão que apanhaste / no dia anterior» (p. 61).

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