De dez anos e alguns meses empregado na maior rede livreira do
país, guardo com especial sacrifício certa reunião em que o CEO de serviço
explicou aos presentes o conceito de venda acrescentada comparando o comércio de
livros com a venda de molhos para batatas fritas num restaurante de hambúrgueres.
Não é especialmente chocante que alguém metido num negócio estabeleça o lucro como
fim último da sua actividade, mas não deixa de ser perturbador verificar que
alguém metido no negócio dos livros seja tão indiferente ao seu produto que
consiga comparar o grau de exigência na actividade de livreiro ao de um
funcionário num restaurante de fast-food. O resultado desta mentalidade está à
vista e já foi exaustivamente dissecado. Quem não espere de um livro
que seja mero ornamento no prato principal, tem bom remédio: procure-os onde
eles não sejam produzidos e, já agora, sugeridos como molhos para batatas
fritas.
Em Açúcar de Melancia (Livraria Snob, Setembro de 2019) é
um desses objectos cada vez mais raros em que se torna patente, da capa à
contracapa, o cuidado, o respeito e o amor dedicados a uma actividade por todos
os lados ameaçada, como seja a de conceber livros sem ter no horizonte, única e
exclusivamente, um número numa folha de Excel que determine relações de
custo-benefício. Não admira que surja com o selo editorial de uma livraria das
chamadas independentes, que é o mesmo que dizer devotas de uma cada vez mais
anacrónica paixão ao saber e ao conhecimento. Refira-se, em abono da verdade,
que não é a primeira vez que o norte-americano Richard Brautigan (n. 1935 – m.
1984) surge em língua portuguesa. Em 2003, a Editorial Teorema tinha publicado Uma
Mulher Sem Sorte, romance póstumo e, dizem os especialistas, o pior de todos
quantos Brautigan escreveu. Onze, dos quais Em Açúcar de Melancia foi o
terceiro.
Tendo começado por publicar poesia no final da década de
1950, o autor de Trout Fishing in America (1967) sofreu uma infância atribulada
marcada pela separação dos pais, pela pobreza e pela instável companhia da mãe.
É a própria filha, Ianthe Brautigan, que no prefácio a esta edição conta que a
certa altura o pai atirou uma pedra à janela de uma esquadra para ser detido na
perspectiva de uma refeição quente. Não só acabou detido, como foi internado
num hospital onde lhe diagnosticaram esquizofrenia paranóide, maleita tratada à base de electrochoques. São dados relevantes para construirmos o puzzle sugerido pelo
universo surrealista em que a sua produção literária de algum modo se afirmará.
The Return of the Rivers (1957) foi o livro de estreia.
Ligado aos movimentos de contracultura em São Francisco,
participou em várias actividades dos The Diggers de Emmett Grogan, autor de uma
extraordinária autobiografia intitulada Ringolevio (1972). Quando Grogan faleceu, aparentemente de overdose, Brautigan dedicou-lhe
o poema Death is a Beautiful Car Parked Only. Mas foi o romance Trout Fishing
in America (1967) que lhe trouxe fama e proveito, atingindo valores de vendas absolutamente
inesperados. Nenhuma das suas obras posteriores repetiu o feito. No dia 16 de
Setembro de 1984 suicidou-se com um tiro na cabeça. Em Açúcar de Melancia foi
escrito 20 anos antes numa casa em Bolinas, Califórnia, precisamente a mesma
localidade onde viria a falecer.
Tudo neste livro é ao mesmo tempo cruel e inofensivo, tal
como a narrativa visual de Pedro Simões que o introduz. Entramos Em Açúcar de
Melancia da melhor maneira, as ilustrações são o pórtico através do qual damos
o primeiro passo para um mundo fantástico e onírico. Escrito em capítulos breves,
com uma clareza e ingenuidade semelhantes à de uma história infantil, este
romance é uma viagem ao «fundo dos nossos sonhos» (p. 37) com uma vila chamada
euMORTE em pano de fundo. O narrador vive lá perto, num barraco, e leva-nos
pela mão com algumas advertências iniciais: «O meu nome depende de vocês.
Chamem-me o que vos vier à cabeça» (p. 40). Seria um desperdício de tempo
buscar explicações lógicas para os acontecimentos que vai relatando, dos tigres
que lhe mataram e comeram os pais, antes de lhe ensinarem aritmética, aos livros
que são usados como combustível, das metamorfoses de euMORTE às trutas que
saltam no rio sobre os túmulos dos mortos ali “enterrados”.
A profusão de imagens, como a de alguém que tem o
vento a parar-lhe nas mãos, ou a dos mortos enterrados em «caixões de vidro no
fundo dos rios» com «fogos-fátuos dentro dos túmulos para que brilhem à noite»
(p. 93), acusa uma carga metafórica à qual nos entregamos como a uma criança
pedimos que se entregue a uma fábula. Nada há que nos demova desse prazer,
ainda que a espaços nos sintamos tentados a estabelecer ligações entre a
orfandade do narrador e a infância do autor, entre o estado delirante das
personagens e o historial clínico de Richard Brautigan. O suicídio também não escapa enquanto tema.
Independentemente
das alusões possíveis e legítimas, o melhor que se retira desta leitura não
provém de um campo onde as conexões lógicas e o sentido se impõem. Leituras sociais,
políticas e psicológicas podem ter a sua lógica, mas apartam-se do que de
melhor o livro tem para oferecer ao leitor, isto é, a liberdade de uma poesia onde
a ausência de sentido se revela o melhor dos mundos possíveis: «Quando o sol
surgisse no horizonte do nosso mundo, a escuridão continuaria e não haveria
qualquer som ao longo do dia. As nossas vozes desapareceriam. Se deixássemos
cair alguma coisa, não se ouviria som algum. Os rios permaneceriam em silêncio»
(p. 176). Tradução de Sara Veiga.
5 comentários:
Fico muito feliz por saber que o Em Açúcar de Melancia é lido de uma forma tão generosa e inteira.
Muito obrigada pela partilha.
Generoso é o livro. Grato pelo comentário.
Julguei que aparecia a minha identificação no comentário, peço desculpa.
O meu nome é Sara Veiga, sou a tradutora do livro.
Muito obrigada, de novo.
Parabéns. Bela tradução.
Muito obrigada.
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