quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

QUANTO MAIS SÓ MAIS FELIZ


Uma das características do debate nas redes sociais (a generalização é abusiva, pois só uso Facebook, mas desconfio que seja igual ou semelhante por todo o lado) é a fulanização das ideias, como se estas precisassem de rosto para ser socado. Para que não me julguem faccioso, dou três exemplos bem distintos: agarra-se no nome de André Ventura, pega-se no nome de Joacine Katar Moreira, pendura-se o nome de Greta Thunberg e toca de dar pancada como se os nomes fossem sacos de boxe e no pensamento não houvesse mais do que braços e pernas musculados ansiosos por pontapear e esmurrar. De semana para semana, lá surge um rosto concreto que alguém associa a uma causa ou a uma ideia em abstracto, ou a deslizes que no nosso dia-a-dia passariam despercebidos, mas no ringue das redes sociais ganham expressão de mandamento. De onde virá esta necessidade de achincalhar figuras públicas, com piadas e insultos, com generalizações e argumentos ad hominem, senão de uma incapacidade para a reflexão crítica de ideias e de conceitos? O resultado disto é a miséria do pensamento. Os simpatizantes de André Ventura deixam de querer saber o que ele defende, pois o que passa a estar em causa é a defesa da sua pessoa; os críticos de Joacine deixam de ligar às causas do LIVRE, pois o que passa a estar em causa é a dramatização da personagem Joacine; Greta, uma adolescente de 16 anos, deixa de representar um movimento de preocupação com o estado do planeta; o ambiente, o clima e a ecologia perdem qualquer significado diante da beatificação a que é sujeita, com peregrinações que mais lembram as outrora realizadas à “santa” da Ladeira do Pinheiro, e o martírio a que fica exposta com o achincalhamento levado a cabo pelos seus detractores. O reino da estupidez também é isto, esta tendência para reduzir tudo a um espectáculo que tem tanto de cómico como de trágico. A conclusão a que chego é simples: o tempo perdido com estas descargas de adrenalina verborreica é tempo desperdiçado, mas é também um retrato desesperante do estado de falência crítica a que chegámos. Exemplo básico desta situação é a partilha em massa de títulos relativos a assuntos e notícias que simplesmente não foram lidas, pois quem partilha satisfaz-se com o título e dispensa qualquer investimento na leitura, ainda que superficial, da notícia. Reparo que é frequente as pessoas partilharem notícias do Polígrafo sem se darem ao trabalho de verificar o tal “fact-checking” a que a notícia foi supostamente submetida, tomando assim por verdadeiro o que era suposto provar-se falso. O problema está em que já não importa a verdade ou a falsidade de uma premissa ou de um argumento, a lógica agora concentra-se toda no sujeito e na sua defesa ou acusação. Vimos isto acontecer, ad nauseam, com José Sócrates e Bruno de Carvalho, indivíduos que para os seus fiéis seguidores serão sempre inocentes por mais que se comprove a sua culpa e para os seus caluniadores serão sempre culpados por mais que se prove a sua inocência. Trata-se de fé, da mesma fé que oleia os mecanismos do reino da estupidez e transforma os indivíduos em fanáticos cegos de crenças absurdas. Só a cultura e a educação poderiam ajudar a resolver isto, estivesse alguém interessado em investir na cultura e na educação para lá de numerus clausus e estatísticas para inglês ver. Vamos ter de nos aguentar com as hordas em fúria à volta dos pelourinhos, na esperança de que se mantenham confortavelmente sentadas nas salas de suas casas coladas aos ecrãs do telemóvel e do computador. Que deixem as Praças vazias para podermos indo dando migalhas aos pombos, é desejo e queira Deus com que alimentamos diariamente o que sobra do prazer de estarmos vivos.

2 comentários:

Andrea Liette disse...

Às vezes penso que sempre foi assim. Apenas não tínhamos alcance massivo da estupidez, como o temos pelas redes sociais. A banalização das questões mais urgentes que enfrentamos, francamente, me usurpam até mesmo o prazer da poesia. Abraço.

MJLF disse...

Uma tristeza o que se passa nas redes sociais, cada vez vou lá menos, só não largo aquilo porque me permite estar em contacto com pessoas que vejo pouco, nomeadamente, amigos que estão longe, que residem no estrangeiro. Falta-me a paciência para a estupidez e para a descarga biliar continua em figuras públicas, parece que vai havendo um sorteio semanal para o pessoal descarregar num saco-figura, descarregarem frustrações, é deprimente. Para além de ser um antro de equívocos e mal-entendidos, enfim. Saúde