terça-feira, 14 de janeiro de 2020

NUNO REBOCHO (1945-2019)



MORITURI

a câmara dos óbitos reúne a amostragem
as lágrimas os sussurros e os odores.
o luto faz contas de cabeça
enquanto as donzelas dedejam os seus amores.
a morte está morta
alheia ao silêncio e ao ruído:
orienta-se pelo ouvido
e só as coroas importunam os vivos.

o morto está morto: a morte só lhe custou
no primeiro momento.
depois habituou-se e tomou-lhe o jeito
e foi pela morte dentro
de peito feito. os viúvos os órfãos os enlutados
bem lhe puxaram pela manga
mas o morto lá ia
mudo aos apelos e aos desvelos
e cansado da cerimónia.
já levava o corpo gasto
como em vida
— mas de diferente maneira.

Nuno Rebocho, in O Discurso do Método, Canto Escuro, Janeiro de 2008, p. 40.

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