Não tem conta a quantidade de vezes que ouvi esta expressão
ao longo da vida, fosse no pátio de uma escola, num estádio de futebol ou na
esplanada de um café. Nunca me foi dirigida, talvez por eu ter cara de lugar
nenhum. Qual a nossa terra? Ensinaram-me na escola que Portugal era o fim da Terra,
o lugar onde se ficava porque não se podia continuar a caminhar. Sendo verdade,
no limite, isto quer dizer que os portugueses são de onde não podem fugir. Ser
português é uma condenação. Depois surgiu aquela conversa de dar novos mundos
ao mundo. Arranjámos caravelas, metemo-nos mar adentro, fomos parar a outras
terras. Passámos de condenados a conquistadores. Nos livros da escola primária
do meu pai Portugal ia do Minho até Timor, era um território estranho, amálgama
de pintas espalhadas pela superfície do globo. Olho para aquilo e vejo uma
espécie de doença cancerígena disseminada pela superfície da Terra. Qual a
terra de um português nascido em Timor? E de um português nascido em Angola? E
de um português nascido no Brasil? Há tempos, fui beber copos com uns amigos brasileiros. No
regresso, um deles, aflito da bexiga, resolveu aliviar-se num recanto público.
Era a parede de uma igreja. Alguém o viu a urinar na parede da igreja, invectivou-o,
ele pediu desculpa. Ao reparar no sotaque brasileiro do criminoso, logo o puro lusitano
soltou o seu grito de guerra: «vai mijar para a tua terra». Acontece que a
terra do aflito ficava longe, ele estava mesmo aflito, aliviou-se onde pôde,
como pôde, sem sequer ter reparado que estava a aliviar-se nas paredes da casa do Senhor. Não
é de todos a casa do Senhor? Durante muito tempo ouvimos falar de Portugal como um
país de emigrantes. Os portugueses que foram para França, Suíça, Luxemburgo, os
portugueses do Canadá, da América, da Austrália, África do Sul. Depois de
perdermos as colónias, terras que porventura alguns ainda julgarão nossas,
houve muita gente que regressou à metrópole e ficou a modos que sem terra.
Alguns filósofos gregos preferiam dizer-se cidadãos do mundo a reivindicar-se
de um lugar, ser cidadão do mundo é ser uma espécie de sem terra. Como é que se manda para a sua terra um cidadão do mundo? Vai para a
tua terra ó cidadão do mundo! O insulto torna-se petição de princípio, é como
dizer: vai para onde estás. Não compreendo, nunca compreendi, como pode ser
insultuoso mandar alguém voltar à sua terra. Julgo que se pretenda rebaixar o
outro dizendo-lhe que está numa terra por empréstimo. O vai para a tua terra
quer dizer: lembra-te disto, esta terra não é tua, estás aqui porque te
acolhemos, portanto respeito, fazes o que mandamos e calas-te, se abrires o
bico volta para a tua terra. O “vai para a tua terra” é uma espécie de “cala-te”.
Nós só mandamos calar quem não nos convém ouvir, é o argumento final,
derradeiro, desesperado, para fugir a um debate e a uma discussão, talvez
porque a saibamos perdida. Não queremos discutir com os imigrantes do Bangladesh
e da Índia e do Sri Lanka que trabalham nas estufas da Costa Vicentina ou
amassam o pão de Rio Maior porque sabemos que o último dos nossos argumentos
seria: volta para a tua terra. E se eles voltassem seria uma chatice, teríamos
que contratar outras pessoas, porventura com outra capacidade de reivindicação,
pessoas que fizessem respeitar os seus direitos laborais. É uma chatice quando
um escravo levanta a voz. Em não podendo ser chicoteado, solução feia,
sobra-nos mandá-lo para a sua terra.
Donald Trump mandou para a sua terra algumas
congressistas que o incomodavam. Não tinha outro argumento. “Go back home”,
vociferou o presidente da maior potência do mundo contra Alexandria
Ocasio-Cortez, Ayanna Pressley, Rashida Tlaib e Ilhan Omar. Trump nasceu num
bairro chamado Jamaica, filho de imigrantes escoceses. A Escócia, como sabem,
faz parte do Reino Unido. Já a actual mulher de Trump nasceu em Novo Mesto,
Eslovénia, ex-Jugoslávia. São pessoas com raízes estranhas, pelo que não é de
estranhar que na cabeça daquela gente a expressão “volta para a tua terra” tenha
um significado diferente do que tem para o comum dos mortais. Imaginem Ocasio-Cortez,
nascida no Bronx, filha de imigrantes porto-riquenhos, mandar para a sua terra
Donald Trump, nascido no bairro Jamaica, filho de emigrantes escoceses. O que
tem de americano Trump que Ocasio-Cortez não tem? O cabelo? Ao sugerir que
Joacine Katar Moreira voltasse para a sua terra, André Ventura, que convive
indiferentemente com saudações nazis nos seus comícios, legitimou um tipo de
argumento racista que é muito comum. Tal como Trump, ele quis dizer: não estás
autorizada a falar deste país porque não nasceste aqui, não és de cá. Isto
pressupõe a ideia de que só tem legitimidade para falar de Portugal quem nasceu
em Portugal. Não há argumento mais redutor e estúpido numa discussão, até pelos
efeitos contraproducentes que introduz. Que dizer ao deputado Ventura quando
ele falar de ciganos? Que se reduza à sua etnia. E quando ele perorar sobre o
Islão? Que se cale, pois é católico, foi seminarista, fique-se pela sua terra
espiritual. Ventura diz que Joacine atacou a História de Portugal,
defesa curiosa vinda de alguém que a todo o momento parece estar empenhado em atacar
a História de Portugal. Não foi isso mesmo que fez ao defender o regresso da
pena de morte? A História de Portugal pode ser contada de muitas maneiras, não
necessariamente daquela que mais convém a Ventura. Estarei a atacar a História
de Portugal se lembrar que Portugal tem um passado esclavagista e colonialista? Estas pessoas que deslocam uma argumentação típica de esplanada para
instituições públicas, sejam elas Trump, Bolsonaro ou Ventura, sendo
desculpados por uns, por “falarem da boca para fora”, e por outros, por “no
fundo não querem bem dizer o que dizem, é tudo ironia”, arrastam consigo um
problema que a certa altura se torna ingovernável: legitimam discursos de
ódio, tornando-se cúmplices de eventuais acções que venham a ser promovidas por tais discursos. O problema do que dizem, por mais estúpido que possa parecer, está na
legitimação e na vulgarização do preconceito, do ódio, da violência, do racismo. Ora, atacar a História de um país é isto mesmo, é recusar-lhe a sua
essência multicultural, partindo do princípio erróneo de que a bandeira tem uma
só cor e de que há portugueses de primeira e de segunda. Lançar anátemas sobre
a história de um país começa, precisamente, nos anátemas que se lançam sobre os
seus cidadãos, procurando diminuí-los por causa de características pessoais que
nada têm que ver com os lugares do mundo onde exercem a sua cidadania. Há uns anos, um tipo chamado Jeroen Dijsselbloem, líder
do Eurogrupo, acusou os países do Sul da Europa, entre os quais Portugal se inclui,
de gastarem demasiado dinheiro com álcool e mulheres. Tentem encontrar uma
posição de André Ventura sobre este anátema lançado sobre os portugueses. Pode
ser que tenham sorte.
2 comentários:
A maior parte de nós não pertence a uma terra mas sim a várias e ainda bem!
O problema é que justamente ele diz em local público e audível o que tantas vezes ouviu por aí.
~CC~
O problema é que ele diz e muitos concordam. É esse o problema.
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