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No seu tempo ela só saía à rua quando tinha mesmo de ser, para fazer as compras da casa e ir à igreja dos Capuchinhos ouvir as prédicas dos fradinhos que falavam muito bem e eram todos muito bons. Entretanto o mundo levara uma grande volta e bastava pôr-se um pé fora de casa para se ver e ouvir coisas de estarrecer, como uma mulher que pedia dinheiro para fraldas porque era incontinente e queria aproveitar uma campanha de saldos nos Supermercados Boa Nova ou como um homem de cara normal, calmamente à espera do autocarro, e que vestia uma t-shirt azul estampada onde se lia em grande letras pretas: lição nº 69, e por baixo: sumário, e por baixo ainda, em letras só um pouco mais pequenas: sexo anal sem dor. Ficara a olhar para ele de boca aberta, ainda mais estupefacta porque ninguém parecia ligar e ele estava acompanhando de uma mulher calada e decentemente vestida. Passara-lhe pela cabeça que talvez fosse um maluco que dava um passeio sob a vigilância da guarda do manicómio. Ou tivesse raptado a mulher para fazer dela escrava sexual. A menos que fosse uma campanha de publicidade a favor do sexo anal e aí já se compreendia melhor aquele ar de tranquilidade e desafogo. Devia ser bem pago e num país de miséria só gente de princípios muito sólidos é que resiste ao poder do dinheiro. Gente como ela, que nunca alinhara em putices. Em vez disso tinha aturado até à morte um marido que já nascera doente e franzino, sempre preparada, durante trinta anos, para o pior. Gastara-se ao serviço do marido e do filho. Outros tinham comido a carne, ela roera os ossos. E em vez do seu modesto prémio de consolação, uma velhice tranquila na companhia de um filho e uma nora respeitosos e trabalhadores que iam às suas ocupações muito satisfeitos por haver quem ficasse a tomar conta da casa, tinha de assistir impávida às galderices da nora e às tristes figuras de corno manso do filho.
Teresa Veiga, in Gente Melancolicamente Louca, Edições tinta-da-china, 1.ª edição, Março de 2015, pp. 175-177.
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