hoje faziam na cidade mais de
quarenta graus, quarenta graus
de inferno neste porto onde chove
o ano inteiro, as ruas tóxicas
incêndios invisíveis a permanente
memória de coisas antigas
queimadas à superfície dos olhos,
tudo sem chama que se veja,
o suar imóvel a tortura dos corpos
inchados transportes públicos a chiar
de raiva quebras de tensão depois de almoço
cigarros a meio pela escassez de oxigénio, tu que te foste
vão vinte e oito dias em combustão,
estúpidos como adolescentes e borbulhas
que crescem sempre mais feias
no dia seguinte. estes dias
em que por cá fiquei ou nem isso, fui ficando,
abandonada à ideia de mim mesma abandonando-te,
tu chegares agora, com aviso mas sem que contasse,
fresco sólido tocado pelo sol
i'm already on the road, hun
e aqui eu, pálida-menina-de-escritório,
(como se faz
para parecer feliz de repente?)
tenho esta vergonha de avisar que o incêndio
vem comendo as entranhas da cidade, do meu cheiro
a cansaço, disto de não saber como te chamar
e por isso falar de ti
menos & menos,
isto:
não saber se abraço beijo se ambos
querer de ti tudo
se ficares, não querer nada
quando abalares, isto não era
para ser assim nós não íamos ser
esta coisa intangível este plástico
a queimar devagar as paredes,
a cinzentidão da manhã que hoje asfixia a cidade
um fogo demente que
ninguém vê ou extingue, terei de explicar melhor,
eu só quero que volte a chover o ano inteiro,
que se foda o sol a primavera essa coisa dos dias felizes,
you say: i'm already on the road, hun
but i?
i didn't sign up for this.
Francisca Camelo (n. 1990), in cassiopeia (apuro edições).
Três livros de poesia publicados: Cassiopeia (2018), Photoautomat (2019) e O Quarto Rosa (2019). Com
formação na área da psicologia, ensaia no livro de estreia uma impressionante
viagem à intimidade sem que se desligue do exterior. O erotismo mistura-se
nos seus poemas com as rotinas quotidianas, a lírica amorosa abre-se a
dimensões aparentemente triviais, num questionamento do corpo e das
transformações que lhe são intrínsecas, excedendo, desse modo, os limites de um
intimismo melancólico ou meramente sentimental. A emoção é aqui indissociável da
ironia com que se mina a própria viabilidade do poema enquanto retrato ou
expressão fiel de um estado de alma. Assim sucede, por exemplo, no poema
intitulado “ao poeta que me envia árias avulsas”. Noutros momentos, a condição
feminina da autora impõe-se enquanto denúncia de uma longa tradição de vícios
sociais que relegam a mulher para o campo da mera erotização do corpo e dos afectos. Uma lírica do desejo
contrabalança, nestes versos, com a panorâmica de uma sociedade afectada por
preconceitos, havendo também espaço para memórias avulsas e descritivas que
remetem, sobretudo, para a idade da adolescência. Com uma linguagem simples,
alternando verso curto e, por vezes, prosa, Francisca Camelo surpreende pela habilidade
com que logra ser incisiva sem resvalar para uma agressividade verbal
gratuita e pretensiosa.
2 comentários:
Uma poetisa que muito me diz. Bastante acertada a tua opinião.
Obrigado manuel.
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