O Portugal quinhentista foi um feixe de tensões contraditórias e Lisboa , como o principal porto europeu do comércio do Oriente, era um vasto mercado de produtos exóticos, de ideias novas e de comportamentos marginais. Consumiam-se drogas, a prostituição masculina rivalizava com a feminina, a violência proliferava. Judeus e mouros traficavam lado a lado com cristãos vindos de toda a Europa. Questões de fé eram debatidas publicamente. Mais de 10% da população de Lisboa era negra. Os marinheiros contavam as suas inverosímeis experiências com gentes e em mundos até então desconhecidos pelos outros povos europeus. Não admira que Thomas More tivesse situado a sua Utopia numa ilha de que tivesse havido notícia por uma marinheiro português cujo emblemático nome, Hythlodacus, o caracteriza como um contador de improbabilidades. Os primeiros encontros dos portugueses com as culturas de outros continentes foram feitos sob o signo da improbabilidade, com o desejo ou a expectativa muitas vezes sobrepondo-se à realidade observada. Álvaro Velho (?-c. 1507), presumível autor do Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, identificara os hindus que viu como os cristãos que os portugueses desejavam que fossem a imagem da sanguinolenta deusa Durga como a imagem da beneficente Virgem Maria. Pêro Vaz de Caminha (1450-1500), na Carta sobre o Achamento das Terras de Vera Cruz, entendera a nudez dos ameríndios que deslumbradamente observou nas praias do futuro Brasil como a prova da existência de uma raça inocente anterior ao pecado de Adão. Mas as duras realidades das viagens também iriam ficar registadas nas narrativas anónimas de desastres compiladas sob o título História Trágico-Marítima.
Helder Macedo, in Oitocentos Anos de Literatura, Abysmo, Fevereiro de 2019, pp. 15-16.
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