Memória para Ruy Belo.
Quando um poeta morre há sempre alguém disponível para o
inscrever num obituário, dedicando-lhe meia dúzia de linhas necrológicas e uma
fotografia onde surja com seu melhor perfil. Só então ficamos a saber
que viveu. Tecem-se loas, partilham-se poemas, o edil lamenta a perda, o padre
abençoa-lhe a alma, fazem-se homenagens. Um coro de carpideiras tinge de
lamentos a atmosfera. Entretidas com os mortos, não deram pelo poeta em vida.
Mas há que fazê-lo renascer agora, que está morto. Volvidos anos sobre a morte
do poeta, as carpideiras mantêm-se fiéis aos defuntos. Um poeta cadáver está
mais vivo do que um poeta enterrado, custa mais exumar um poeta do que chorar
um cadáver. Talvez o poeta morto há anos seja merecedor de uma atençãozinha.
Lembram-se do dia em que nasceu como nunca se lembraram quando estava vivo,
encomenda-se-lhe um busto e convoca-se a população inteira para inaugurar uma
rua com seu nome. Incrustado no mármore da placa toponomástica, o nome do poeta
perdurará num pátio, numa praça, numa travessa, numa rua, eventualmente numa
avenida onde outros poetas vivos circulem anónimos e indigentes. O momento é
solene, ao lado do edil um padre de batina, ao lado do padre quiçá um
herdeiro, ao lado do herdeiro um vazio imenso. Na rede circulam palavras do
poeta como nos caudais dos rios são arrastados detritos, a tinta do nome na placa vai desaparecendo até que tudo fique branco e invisível.
Talvez algures alguém gize num quadro negro as datas de nascimento e
perecimento do poeta, jamais sendo certas as últimas senão tendo em conta que a
vida por ele levada foi sempre a morrer até ter o corpo desistido de morrer
mais. Quando um poeta morre há um bruaá de espanto e dúvida, todos quantos não
deram sequer por ele em vida acham-se agora no dever de pelo menos lhe celebrarem
a morte. É preciso fazer qualquer coisa pelo poeta morto. Talvez matá-lo um
pouco mais, na esperança sempre segura de que venha a transformar-se em
esquecimento poupando-nos, assim, a trabalhos continuados.
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