quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

QUANDO UM POETA MORRE


Memória para Ruy Belo.

Quando um poeta morre há sempre alguém disponível para o inscrever num obituário, dedicando-lhe meia dúzia de linhas necrológicas e uma fotografia onde surja com seu melhor perfil. Só então ficamos a saber que viveu. Tecem-se loas, partilham-se poemas, o edil lamenta a perda, o padre abençoa-lhe a alma, fazem-se homenagens. Um coro de carpideiras tinge de lamentos a atmosfera. Entretidas com os mortos, não deram pelo poeta em vida. Mas há que fazê-lo renascer agora, que está morto. Volvidos anos sobre a morte do poeta, as carpideiras mantêm-se fiéis aos defuntos. Um poeta cadáver está mais vivo do que um poeta enterrado, custa mais exumar um poeta do que chorar um cadáver. Talvez o poeta morto há anos seja merecedor de uma atençãozinha. Lembram-se do dia em que nasceu como nunca se lembraram quando estava vivo, encomenda-se-lhe um busto e convoca-se a população inteira para inaugurar uma rua com seu nome. Incrustado no mármore da placa toponomástica, o nome do poeta perdurará num pátio, numa praça, numa travessa, numa rua, eventualmente numa avenida onde outros poetas vivos circulem anónimos e indigentes. O momento é solene, ao lado do edil um padre de batina, ao lado do padre quiçá um herdeiro, ao lado do herdeiro um vazio imenso. Na rede circulam palavras do poeta como nos caudais dos rios são arrastados detritos, a tinta do nome na placa vai desaparecendo até que tudo fique branco e invisível. Talvez algures alguém gize num quadro negro as datas de nascimento e perecimento do poeta, jamais sendo certas as últimas senão tendo em conta que a vida por ele levada foi sempre a morrer até ter o corpo desistido de morrer mais. Quando um poeta morre há um bruaá de espanto e dúvida, todos quantos não deram sequer por ele em vida acham-se agora no dever de pelo menos lhe celebrarem a morte. É preciso fazer qualquer coisa pelo poeta morto. Talvez matá-lo um pouco mais, na esperança sempre segura de que venha a transformar-se em esquecimento poupando-nos, assim, a trabalhos continuados.

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