terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

UM POEMA DE REGINA GUIMARÃES


CASAMATA

Estava D. Chicote de la Manca
sentado e sentada à soleira
na menos cómoda cadeira
a que chama decisão
obra e graça de um feitio
zelosamente hesitante.
Estava e estaria e nem isso
não fora a cadeira coxa
lembrar-lhe as necessidades
e a verdade dos prazeres.

Bebeu a primeira água
bebida abrenunciada
ora porque permitida
ora porque permissiva
e enche a barriga de sol nascente

— pois a manhã, essa sim,
a todo o bicho careta e carente
pertence
Escuta por dentro o tumulto da barriga
e por fora o gato em cio e a gaivota em
terra.

As ideias de tão novas
furam-lhe a fraca cabeça
entrando por um ouvido
e pelo outro saindo
como balas que se perdem
da arma e do alvo alva.
Por fim desce à rua ela ele
com a velha casa às costas
fugindo devagarinho
debaixo de amante cega
e cego amor de morar.

Lá do alto tombam pedras
duma ruína previsível...
Se D. Chicote caminha
é por não querer morrer
soterrado soterrada
no seu morar luminoso.

Calça sapatos de palco
que agarram carne de chão
D. Chicote de la Marcha
viaja até haver mar
para perder o lugar
e tornar ao seu princípio.

No ventre vazio e vago
digere sem se apressar
legiões de anjas e anjos
que nos hão-de acompanhar
em jornada mais estranha
e em vida mais segunda.

Sendo assim imundo imunda
nenhum perdão na cozinha
nenhum rancor na despensa
sala de estar no entanto
sala de estudo do meio
sala do estado de sítio

Regina Guimarães, in Casamata, com desenhos de Paulo Ansiães Monteiro, Douda Correria, Outubro de 2017, s/p.

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