As gaivotas andam loucas, de dia para dia ameaçam tomar
conta do bairro. Detesto gaivotas, a sorte delas é ninguém as querer comer. Mas
elas atacam os pombos. Não tivesse eu fobia a pássaros, importaria bandos de
águias para darem cabo das gaivotas. Sou como os gatos que assomam às varandas para
contemplarem suas presas. Mesmo enclausurado, não deixo de contemplar as minhas
presas. É exercício que me oferece a ilusão de uma certa liberdade. Passa-se
exactamente o mesmo na vida em rede. Somos reclusos a cumprir pena por crimes
de que nos julgamos injustamente condenados, mas nem por um segundo deixamos de
espreitar inimigos através das assépticas janelas virtuais que nos conservam obedientes
e cumpridores garantindo... distanciamento social. Infelizmente, não temos a
inteligência dos gatos. Guerreamos sem garras nem dentes, apenas palavras
domésticas, esbatidas, cansadas, dolentes. Que digo eu? As palavras parecem-me
todas iguais por estes dias, tudo me parece repetido e entediante, monótono,
fastioso, aborrecido. Sem a vida das ruas, é como se as palavras começassem a
patinar na sua própria história perdendo sentido e significado. A experiência
atribuí-lhes um travo a selvajaria, reforça-as e reanima-as de crueldade, matiza-as
de duplos e triplos e brutos sentidos. Domesticadas, redundam anódinas como
gatos ronronantes em varandas mil e uma vezes varridas ao longo de um dia,
outro dia, mais um dia. Como se não bastasse frecharem-nos em casa, querem-nos
agora de máscara no rosto. Odeio tanto as máscaras como detesto gaivotas.
Quando criança, minha mãe mascarava-me por alturas do carnaval e exigia-me que
eu fosse feliz. Sofria com as gargalhadas burlescas do entrudo como uma criança
sofre quando é castigada no meio da sala de aula. Gerou-se dentro de mim um
nojo a máscaras e um medo de mascarados do qual nunca mais me refiz. Agora
querem que me mascare, dizem que é para meu bem. Tento distrair-me desta paranóia
sanitária, que mete todos a cuidarem de todos, refugiando-me entre o pó dos
livros, mas não consigo ler, a concentração resvala amiúde da página para o
necrológio em que o mundo se transformou. Pego na guitarra e improviso melodias
ao som de trovoadas, os relâmpagos iluminam-me as noites, saio para caminhar
4000 passos, imiscuo-me no vazio das ruas da cidade vislumbrando em plena noite
um indivíduo com óculos escuros a caminhar aos esses, regresso a casa ao som de
“Peer Gynt” e com a preocupação antecipada de higienizar as mãos antes de
voltar a tocar nas minhas filhas. Há dias aproveitámos o dia mundial do beijo
para rever “Cinema Paraíso”, do Giuseppe Tornatore. Quem se recorde da
sequência final perceberá o vínculo, quem a tiver olvidado poderá procurá-la onde
tudo se encontra com a maior das facilidades: na Internet. Só duas coisas não
se encontram na Internet, aromas e texturas com que entreter os mais
sacrificados dos sentidos. Além da sequência dos beijos, há aquela cena do
filme em que Alfredo, já cego, pede a Toto que o leve a passear até ao mar.
Tornatore enquadra o diálogo entre os dois amigos com imagens de âncoras
espalhadas pelo cais. Não são meros adereços, são uma espécie de coro com a
função dramática de nos anunciarem o afastamento de Toto das suas raízes, a
necessidade de se libertar partindo, saindo, deslocando-se na direcção de um
futuro que não obrigue a olhar para trás, sem nostalgia nem a melancolia arrastada
de um saudade tão nossa. Nunca desesperei tanto por momento igual.
3 comentários:
O país não está paralisado !
Parados só estão a educação (até hoje), a Hotelaria em parte, alguns serviços.
A agricultura, a pesca,as padarias,a indústria transformadora,a indústria mineira,as refinarias,os transportes,a construção civil,etc.,etc.,etc., nem pensaram em parar,felizmente!
Acorda,meu ! Só o teu quarto está parado !
Sai de casa, caminha, olha à tua volta. Se não tiveres lesões na medula espinal que te mantenham o corpo todo paralisado, claro. Que da cerebral já não te livras.
felizmente a pide das varandas não chegou cá, podemos ir passear de vez em quando.
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