Um negro salva o filho do patrão na sequência de um
incêndio, ficando com o rosto completamente deformado. Apenas um olho sobra
intacto no seu semblante aterrador. A comunidade pressiona o patrão a livrar-se
do negro, o monstro que a todos assusta com seu corpo sem rosto. Assim podíamos
resumir “O Monstro”, genial conto publicado por Stephen Crane (1871-1900) em
1899. Morreu muito novo, com apenas 28 anos de idade, este mais novo de catorze
filhos de um padre Metodista. Jornalista por opção, publicou a expensas
próprias, sem grande sucesso, um primeiro romance: “Maggie: A Girl of the
Streets” (1893). O tema escandaloso obrigou-o a usar pseudónimo, revelando-se
em nome próprio, dois anos depois, com o seu único verdadeiro êxito em vida: “The
Red Badge of Courage” (1895). Conta-se que um veterano de guerra, depois de ter
lido a obra-prima de Crane, garantiu ter combatido ao lado do autor, o qual era
apenas um jovem boémio com aspirações literárias. No mesmo ano da obra-prima
saiu um volume de poemas intitulado “The Black Riders and Other Lines” (1895),
agora traduzido para língua portuguesa por manuel a. domingos com o título “Os
Cavaleiros Negros e Outros Poemas” (Medula, Abril
de 2020). Não é por acaso que
começo pelo homem sem rosto, pelo monstro segregado, isolado, solitário. Tudo
levaria a crer que fosse elevado a herói depois de lograr proteger de chamas infernais
o jovem filho do patrão, mas a sociedade mesquinha onde os factos sucedem, com
seus cidadãos tão influentes quão perversos, confunde-se em matéria de
monstruosidade com o desafortunado negro. Na curta mas intensa obra de Stephen
Crane ressalta uma desconfiança pessimista sobre as estruturas orientadoras da
sociedade, não necessariamente sobre o indivíduo em particular. É um facto que
sobre o indivíduo em particular também não há muita esperança a investir, mas o
seu alvo preferencial parecem ser as hierarquias e os elos estabelecidos entre evangelizadores,
zeladores, missionários, para quem o outro é sempre objecto de resistência
sujeito à conversão. O poema XLVII de “Os Cavaleiros Negros” expressa bem esta
postura em defesa de uma autonomia e independência do individuo contra os
pregões e a propaganda do missionário: «”Pensa como eu penso”, disse um homem.
/ “Ou és um ser abominável; / Ou um sapo.” // E depois de pensar sobre isso, /
Disse-lhe, “Serei, então, um sapo.”» (p. 64) A mesma autonomia reconhece-se no
próprio aspecto formal da poesia de Crane, impressionantemente modernista para a
época e, ao contrário do padrão estabelecido por Walt Whitman, de uma economia
verbal extremamente incisiva e certeira. Remetendo o título para as visões apocalípticas de
João, estes cavaleiros negros fazem-nos também chegar notícias da peste, da
guerra, da fome e da morte, sendo certo que nenhum dos temas foi estranho ao
autor. Vítima de tuberculose, viveu grande parte da sua vida na penúria e foi
correspondente de guerra em Cuba. Em cerca de setenta poemas
epigramáticos,
Stephen Crane recupera ainda do “Apocalipse” um certo tom místico, visionário, para nos revelar os pecados humanos em carne viva, misturando no
discurso devaneios de ordem diversa, parábolas, encontros, relatos. Deus é, não
por acaso, tema central, mas sempre numa envolvência fantasmagórica que o
relega para um plano de ausência diante da perdição humana. No poema X vislumbra-se o foco: «O mundo poderia desaparecer. / Deixar para trás o seu negro
terror. / As suas noites infinitas, / Nem Deus, nem homem, nem lugar onde ficar
/ Seriam para mim essenciais, / Se tu e os teus exércitos de luz lá estivessem,
/ Ficaria longe da queda na escuridão» (p. 26). A quem se dirige o autor?
Talvez não caiba aqui responder a uma pergunta destas, talvez seja preferível
manter o mistério aceso. A verdade é que a desconfiança de uma moral bíblica
reside tanto nestes poemas como nos contos de “O Monstro e Outros Contos”
(Antígona, Junho de 2003), traduzidos para a nossa língua por David Furtado.
Assim sendo, talvez possamos afirmar que na frente de batalha da obra de
Stephen Crane a humanidade defronta-se com os seus deuses (aqui entendidos no
sentido de verdades universais e axiomáticas, assumam elas a configuração de um
Deus todo poderoso ou de qualquer instituição que pretenda
sobrepor-se à liberdade individual, seja em nome de Deus, da Natureza, da Justiça ou de outra coisa qualquer), revelando-se quão de barro são os pilares axiológicos sobre os quais foi erigida toda uma sociedade que o autor viu crescer entre os cadáveres de homens espoliados e os destroços de cidades derruídas. Contemporâneo
de Franz Kafka, que neste lado do mundo ilustrava, com os seus contos, um
absurdo anterior ao absurdo, Stephen Crane foi no outro lado do atlântico o
mais sublime herdeiro de Sísifo: «Muitos trabalhadores / Construíram uma grande
esfera de pedra / No topo de uma montanha. / Depois foram para o vale mais
abaixo, / E contemplaram a obra. / “É magnífica,” disseram; / Adoravam a coisa.
// De repente, ela mexeu-se: / Caindo rapidamente sobre eles; / Esmagando-os
por completo. / Ainda assim alguns conseguiram gritar» (p. 47).
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