segunda-feira, 18 de maio de 2020

STEPHEN CRANE


Um negro salva o filho do patrão na sequência de um incêndio, ficando com o rosto completamente deformado. Apenas um olho sobra intacto no seu semblante aterrador. A comunidade pressiona o patrão a livrar-se do negro, o monstro que a todos assusta com seu corpo sem rosto. Assim podíamos resumir “O Monstro”, genial conto publicado por Stephen Crane (1871-1900) em 1899. Morreu muito novo, com apenas 28 anos de idade, este mais novo de catorze filhos de um padre Metodista. Jornalista por opção, publicou a expensas próprias, sem grande sucesso, um primeiro romance: “Maggie: A Girl of the Streets” (1893). O tema escandaloso obrigou-o a usar pseudónimo, revelando-se em nome próprio, dois anos depois, com o seu único verdadeiro êxito em vida: “The Red Badge of Courage” (1895). Conta-se que um veterano de guerra, depois de ter lido a obra-prima de Crane, garantiu ter combatido ao lado do autor, o qual era apenas um jovem boémio com aspirações literárias. No mesmo ano da obra-prima saiu um volume de poemas intitulado “The Black Riders and Other Lines” (1895), agora traduzido para língua portuguesa por manuel a. domingos com o título “Os Cavaleiros Negros e Outros Poemas” (Medula, Abril
de 2020). Não é por acaso que começo pelo homem sem rosto, pelo monstro segregado, isolado, solitário. Tudo levaria a crer que fosse elevado a herói depois de lograr proteger de chamas infernais o jovem filho do patrão, mas a sociedade mesquinha onde os factos sucedem, com seus cidadãos tão influentes quão perversos, confunde-se em matéria de monstruosidade com o desafortunado negro. Na curta mas intensa obra de Stephen Crane ressalta uma desconfiança pessimista sobre as estruturas orientadoras da sociedade, não necessariamente sobre o indivíduo em particular. É um facto que sobre o indivíduo em particular também não há muita esperança a investir, mas o seu alvo preferencial parecem ser as hierarquias e os elos estabelecidos entre evangelizadores, zeladores, missionários, para quem o outro é sempre objecto de resistência sujeito à conversão. O poema XLVII de “Os Cavaleiros Negros” expressa bem esta postura em defesa de uma autonomia e independência do individuo contra os pregões e a propaganda do missionário: «”Pensa como eu penso”, disse um homem. / “Ou és um ser abominável; / Ou um sapo.” // E depois de pensar sobre isso, / Disse-lhe, “Serei, então, um sapo.”» (p. 64) A mesma autonomia reconhece-se no próprio aspecto formal da poesia de Crane, impressionantemente modernista para a época e, ao contrário do padrão estabelecido por Walt Whitman, de uma economia verbal extremamente incisiva e certeira. Remetendo o título para as visões apocalípticas de João, estes cavaleiros negros fazem-nos também chegar notícias da peste, da guerra, da fome e da morte, sendo certo que nenhum dos temas foi estranho ao autor. Vítima de tuberculose, viveu grande parte da sua vida na penúria e foi correspondente de guerra em Cuba. Em cerca de setenta poemas
epigramáticos, Stephen Crane recupera ainda do “Apocalipse” um certo tom místico, visionário, para nos revelar os pecados humanos em carne viva, misturando no discurso devaneios de ordem diversa, parábolas, encontros, relatos. Deus é, não por acaso, tema central, mas sempre numa envolvência fantasmagórica que o relega para um plano de ausência diante da perdição humana. No poema X vislumbra-se o foco: «O mundo poderia desaparecer. / Deixar para trás o seu negro terror. / As suas noites infinitas, / Nem Deus, nem homem, nem lugar onde ficar / Seriam para mim essenciais, / Se tu e os teus exércitos de luz lá estivessem, / Ficaria longe da queda na escuridão» (p. 26). A quem se dirige o autor? Talvez não caiba aqui responder a uma pergunta destas, talvez seja preferível manter o mistério aceso. A verdade é que a desconfiança de uma moral bíblica reside tanto nestes poemas como nos contos de “O Monstro e Outros Contos” (Antígona, Junho de 2003), traduzidos para a nossa língua por David Furtado. Assim sendo, talvez possamos afirmar que na frente de batalha da obra de Stephen Crane a humanidade defronta-se com os seus deuses (aqui entendidos no sentido de verdades universais e axiomáticas, assumam elas a configuração de um Deus todo poderoso ou de qualquer instituição que pretenda sobrepor-se à liberdade individual, seja em nome de Deus, da Natureza, da Justiça ou de outra coisa qualquer), revelando-se quão de barro são os pilares axiológicos sobre os quais foi erigida toda uma sociedade que o autor viu crescer entre os cadáveres de homens espoliados e os destroços de cidades derruídas. Contemporâneo de Franz Kafka, que neste lado do mundo ilustrava, com os seus contos, um absurdo anterior ao absurdo, Stephen Crane foi no outro lado do atlântico o mais sublime herdeiro de Sísifo: «Muitos trabalhadores / Construíram uma grande esfera de pedra / No topo de uma montanha. / Depois foram para o vale mais abaixo, / E contemplaram a obra. / “É magnífica,” disseram; / Adoravam a coisa. // De repente, ela mexeu-se: / Caindo rapidamente sobre eles; / Esmagando-os por completo. / Ainda assim alguns conseguiram gritar» (p. 47).

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