sexta-feira, 29 de maio de 2020

UM GESTO INTENSO



Facilmente gera irritação a natureza tão palavrosa, tão desmoronada, esgotada, barrenta, bem-falante do texto seguido, e do seu caudal incrível a jorrar assim no ar, sustendo-se apenas pela pretensão do seu sopro ou do palavreado que o incha. A maior parte dos artigos, a maior parte das teses e dos ensaios, a maior parte dos livros que se publicam é uma lengalenga. Nas melhores páginas fragmentárias, desejaríamos avidamente qualquer coisa não apenas quebrada mas também quebrante. Um gesto intenso, arrancado ao vazio, e cuja intensidade imediatamente esmagasse. A sua própria densidade afunda-o de repente no nada. A sua interrupção deve transtornar tanto quanto a sua aparição surpreendeu. Neste sentido o seu uso deve ser extremamente circunspecto, e raro, como o grito, que não tem eficácia e poder terrível senão quando nada o prepara e quando nada o repete.

Pascal Quignard, in Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos - ensaio sobre Jean de La Bruyère, tradução de Pedro Eiras, Deriva, Dezembro de 2009, pp. 56-57.

Sem comentários: