sábado, 30 de maio de 2020

BRANCOS E PRETOS



   Não muito tempo depois de um cidadão afro-americano (norte-americano por defeito) ser torturado e executado, a céu aberto, por um polícia extremamente zeloso da sua farda, um protótipo da Starship explodiu no Texas durante o período de testes. Como somos fracos a contas, desconhecemos quantos milhões arderam em combustível e se transformaram em cinzas nesta experiência com o espaço intergaláctico em vista, espaço esse onde certamente se viverá divinamente. Cá pela Terra, o tal afro-americano foi estrangulado, ao que se sabe, por causa de uma suposta nota falsa de vinte dólares. A mulher do polícia pediu divórcio. são contas mais fáceis de fazer.

   É preciso referir que Elon Munsk anda deveras excitado com a possibilidade de tornar acessíveis as viagens ao espaço, sendo acompanhado em tamanha excitação por uma caterva de fãs que descobriram nas novas tecnologias o futuro da humanidade. Não fossem as novas tecnologias jamais teríamos acesso aos smartphones, fabricados com metais raros importados da China, e jamais saberíamos quem foi George Floyd, não teríamos a mesma capacidade de organização de vigílias e de manifestações pacíficas, silenciosas, pelo afro-americano e, já agora, pelos 820 milhões de famintos que definham pelo mundo, pelos índios na Amazónia e pelo coala australiano.

   Um dia deixaremos de falar da distribuição da riqueza pelo planeta para nos concentrarmos definitivamente na distribuição da miséria, as lojas de armas não terão filas à porta em tempos de pandemia e os milhões que surgem do nada para descanso dos mercados poderão ser aplicados em cabanas com vista para marés de poeira em Marte. Sou um optimista, a mulher do polícia pediu o divórcio, o Twitter vigia as declarações do presidente da maior potência militar do mundo, estamos a salvo, Kim Jong-un continua vivo, Bolsonaro bebe leite e o suicídio prospera no Japão, um judeu e um índio travam-se de razões no ringue das tragédias universais: o que foi pior, o holocausto nazi ou o extermínio dos ameríndios?

   Quem ande pelas redes sociais, essas mesmas a quem Umberto chamou o eco de uma legião de imbecis, confronta-se amiúde com problemáticas similares, não sendo de todo raro ver gente a medir forças entre gulags e campos de concentração nazis, Israel e Palestina, brancos e pretos, como quem discute um clássico da liga profissional de futebol. As vidas das pessoas não importam, na equação custo/benefício valem pouco, pesam quase nada. Se a certa altura da nossa suposta evolução enquanto seres humanos julgámos que sim, perdemos qualquer resquício de fé nessa possibilidade ao olharmos de relance o mundo actual. Weisman, o judeu da peça de György Tábori, pensou livrar-se da filha deficiente como quem se livra de gatinhos recém-nascidos. Carrega a filha-fardo como um peso na consciência, reconhece-o. O Cara Vermelha com quem se debate não sabe quem ou o que é, está confuso, tem um problema de identidade, talvez um pouco à semelhança do György feito George ou de todo e qualquer afro-americano (norte-americano por defeito). Obama já passou, Trump aí está para recuperar o orgulho supremacista branco.

   “Weisman e Cara Vermelha” (Companhia das Ilhas, Maio de 2020), a peça de George Tabori traduzida por Carlos Borges para o Teatro da Rainha, não escapa ao tema complexo da identidade étnica e cultural ao colocar em cena um judeu, o que resta de um índio e uma jovem mongolóide. Ainda se pode dizer mongolóide? Deveria dizer downiana? A questão da identidade e o desfile de desgraças que cada um dos pugilistas tem para arremessar (parecem duas velhas a exibir doenças) não esgotam o alcance desta comédia negra, muito ao nível do estado do mundo tal como o vamos percepcionando a cada dia que passa. O que impele tanto o índio como o judeu para um Nada identitário é o que vai ficar a martelar na nossa cabeça tal como martela na consciência de cada uma daquelas criaturas.  

   As Rocky Mountains são cenário perfeito para um western, ainda que no duelo final a tensão exercida pelo poder de antecipação seja subvertida por um metralhar de desgraças pessoais que trazem já por terra os dois pistoleiros. Ao silêncio de esgares traiçoeiros projectados numa sala de cinema o teatro prefere a confissão de dois derrotados, havendo talvez entre ambos uma heroína improvável. Rute, a menina deficiente, com gestos alienados de lógica, criatura que aparenta ser de outro mundo, talvez do tal espaço intergaláctico onde Elon Munsk vai tentando meter os pés com foguetões que não chegam a levantar voo. É ela que ao espalhar as cinzas da mãe por cima do pai diz: «Agora semeio a mamã em cima de ti e das rochas crescerá beladona.» A sua deficiência é estar do lado dos vencidos. Não há tecnologia capaz de transmitir tamanha sabedoria.

2 comentários:

Anónimo disse...

sempre ouvi dizer que a Suécia era a "campeã" dos suicídios. de onde retirou a ideia de que "o suicídio prospera no Japão"?

https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_suicide_rate

de acordo com a wikipedia (é uma fonte tão má ou tão boa como qualquer outra) Rússia, homens, e Lesoto, mulheres, é quem vai à frente.

hmbf disse...

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150705_japao_suicidio_rb

https://www.japantimes.co.jp/news/2020/05/17/national/social-issues/japan-suicides-coronavirus/#.XtOtBFVKjIU

https://www.theguardian.com/world/2020/may/14/japan-suicides-fall-sharply-as-covid-19-lockdown-causes-shift-in-stress-factors