segunda-feira, 22 de junho de 2020

FILIPA

São escassas as informações sobre José Manuel Pressler (n. 1938 – m. 1965), autor que terá frequentado o chamado Grupo do Café Gelo nos idos de 1960. Ao contrário de outros dessa segunda (ou terceira) vaga do surrealismo português, Pressler não foi incluído por Cesariny na antologia “Surrealismo/Abjeccionismo” (Minotauro, Março de 1963). Surgem Virgílio Martinho, João Rodrigues, Ernesto Sampaio, António José Forte, José Sebag, Manuel de Castro, mas nada de Pressler. Publicado postumamente em 1967, o único livro do autor resultou dos esforços do amigo Manuel de Castro (n. 1934 – m. 1971). “Filipa” (Barco Bêbado, Maio de 2020) conhece agora nova edição, acrescentada de um pungente texto de Manuel de Castro recuperado do n.º 21 do magazine & etc: «Tempo houve em que pude enfrentar o mundo com raiva, com furor e indignar-me. Agora estou cego e digo que tudo é relativo. É um estado de neutralidade introvertida que sei não conduzir a sítio algum» (Julho de 1968).

   Pressler morreu em Bruxelas, depois de disparar um tiro na cabeça. A poesia que nos outorgou testemunha um desassossego interior que oscila entre uma busca desesperada da beleza/amor e a renúncia a uma realidade sufocante e claustrofóbica, que era a do país da ditadura e de todas as limitações à liberdade individual. Mais do que o surrealismo, parece ser o simbolismo a sua principal fonte. Ao lermos estes poemas vislumbramos ecos de um interesse pelo obscurantismo esotérico, pelos princípios cabalísticos, pelos rituais egípcios da morte, com reflexos imagéticos de uma cosmogonia singular: «do mesmo Ventre o rosto azul e as mãos / o corpo alado   o estranho pensamento / e o Bruxo que dá corpo em suas mãos / à Figa que equilibra o firmamento» (p. 14).

   Os poemas de “Filipa” são, desde a inicial (iniciática?) carta a Almada Negreiros, um escape ao realismo, uma porta de entrada para um universo íntimo onde a realidade quotidiana raramente chega, e, quando chega, vem já de tal modo deformada que quase nem damos por ela. Há por isso uma elevada acentuação emocional em alguns poemas, belos na forma e no ritmo, muitas vezes comoventes até pela simplicidade que alcançam: «Obrigado meu deus / por mais esta manhã / disposta puramente / no regaço da terra adormecida // por mais esta manhã / te prometo, meu deus // quando eu morrer irei falar de ti / ao mar / ao sol / às flores / a meus irmãos» (p. 18).

   A natureza é um dos elementos convocados para configurar um belo hermético e inacessível, a não ser talvez pela fusão que com ela a morte proporciona. Tema central nesta poesia, a morte aparece como necessária ao amor, à paz. “Oferta”, extraordinário poema, di-lo em letras garrafais: «O AMOR, A PAZ, SÓ SÃO POSSÍVEIS NELA.» (p. 20) O pendor escatológico que percorre toda a obra, com referências recorrentes ao cuspo, ao escarro, e à merda enquanto “Autógrafo” da existência (ver poema da página 64), não pode ser dissociado desta complexa conexão estabelecida entre o absurdo da morte e a possibilidade do amor: «um escarro de outro   azul   aconteceu / ao canto de uma boca colossal // o tempo fez      do escarro que nasceu / o corpo deste absurdo universal // e quando a vida   bela   despontava / liberta      da trampa que a gerou / tornou-se humana // — náusea / angústia / raiva — / porque o Homem fez deus — e se matou» (p. 22).

   Alguns poemas de “Filipa” são sínteses modelares dos mistérios da vida, equilibrando a complexidade filosófica em que mergulham com uma agradável fluência rítmica e prosódica. Outros parecem fragmentos, estilhaços de uma experiência íntima pautada pela fúria e pela raiva com que pode alguém esmagar o desespero antes de por ele ser esmagado. Belíssima edição da "neófita" Barco Bêbado, de que se fizeram apenas 300 exemplares. Deixo para exemplo um dos meus poemas preferidos do livro:

 

quero ser Eu e quero ser Loucura   e quero ser

Razão, sem distinguir   e quero nu meu corpo

e nu vestir eu quero a nua veste da ventura

 

e quero nua e triste a sepultura   e quero nela

entrar e, já, sair   e quero ser sem Ser ao decidir

se quero ser chão ou ser altura

 

e quero que mil olhos venham ver-me e que mil mãos

anseiem por sentir-me e que mil bocas sofram por

sorver-me e quero que mil homens queiram ter-me

e em mil corpos de virgens quero vir-me

 

para ver se consigo compreender-me

1 comentário:

Take Direto disse...

Tenho este. Gostei tanto.